Não há comuns sem comunidade, e não há comunidade sem mulheres (Federici, 2022)
A ideia de comum urbano reapareceu de forma expressiva recentemente, nos protestos globais, tornando visível um mundo de propriedades e relações comunais que muitos acreditavam estar extintas ou não valorizaram até serem ameaçadas de privatização, afirma Federici (2011). Nas palavras de Tonucci Filho e Magalhães (2017) a “ideia do comum urbano tem sido invocada por movimentos, pesquisadores e até por formuladores de política pública para reivindicar e proteger contra privatizações recursos e bens urbanos que poderiam ser mais amplamente compartilhados entre os habitantes.”
Como exemplos podemos citar a ocupação da Praça Taksim em Istambul em 2013 que iniciou como um protesto contra a demolição do parque e a construção de um shopping center no local. E no Brasil o movimento Parque Augusta que lutou por muitos anos por um parque neste terreno público de 24 mil m² no centro de São Paulo. Estes casos ilustram as inúmeras disputas nas nossas cidades entre a manutenção dos recursos coletivos e a privatização do espaço público, deflagradas no contexto neoliberal.
Conforme Federici (2011, p. 1): “a ideia serve a uma função ideológica como um conceito unificador que prefigura a sociedade cooperativa que muitos estão se esforçando para criar”. Mas que “há muito tempo, encontra-se incorporado nas favelas, periferias e espaços designados aos pobres urbanos, devido ao entrelaçamento entre estratégias de sobrevivência, informalidade, engenhosidade coletiva e reprodução social”, afirmam Tonucci Filho e Magalhães (2017, p. 16).
Na visão de Federici, a luta pelos bens comuns está ao nosso redor e novas formas de cooperação social estão sendo constantemente produzidas. Mas como reunir os muitos bens comuns que estão sendo defendidos e desenvolvidos para que possam formar um todo coeso e fornecer uma base para um novo modo de produção? Para que o princípio dos comuns se traduza em um projeto político coerente, precisamos atentar para as diferentes interpretações do conceito. A autora propõe uma discussão da política dos comuns a partir de uma perspectiva feminista, pois "é a base sobre a qual a sociedade é construída e pela qual todo modelo de organização social deve ser testado" (FEDERICI, 2011, p. 2).
Ela argumenta que historicamente as mulheres foram firmes defensoras de culturas comunalistas, reconstruindo formas de vida coletiva. As mulheres também lideram esforços de “coletivização do trabalho reprodutivo como meio de economizar o custo da reprodução e proteger-se mutuamente” (FEDERICI, 2011, p. 4). Representam, portanto, fortes laços comunitários por meio do fazer-comum - entendido como ação baseada em colaboração e práticas de autogestão, princípio político e prática de produção coletiva (TONUCCI FILHO e MAGALHÃES, 2017).
Federici cita que na África as mulheres produzem 80% da comida que as pessoas consomem. “Na década de 1990, em muitas cidades africanas, em face do aumento dos preços dos alimentos, elas se apropriaram de terras públicas e plantaram milho, feijão, mandioca ao longo das estradas... em parques, ao longo das linhas ferroviárias, mudando a paisagem urbana das cidades africanas e a divisão entre cidade e campo no processo” (FEDERICI, 2011, p. 4).
A experiência das mulheres integrantes do Movimento Sem Terra do Brasil também é lembrada pela autora, bem como por Márcia Tait Lima (2015) no livro ‘Elas dizem não! Mulheres camponesas e a resistência aos cultivos transgênicos no Brasil e Argentina’ que aborda o discurso e as práticas das mulheres camponesas no sentido de uma transformação social emancipatória. Mais, os protestos na Índia no ano passado contra as novas leis agrícolas do governo, considerado um levante agrário a nível mundial, foram liderados por mulheres agricultoras.
Enfim, para Federici, a recriação do(s) comum(s) passa pela “produção de nós mesmos como um assunto comum”, pois “não há bens comuns sem comunidade”. Porém, 'comunidade' tem que ser entendida não como um grupo de pessoas unidas por interesses, mas sim como uma qualidade de relações, um princípio de cooperação e de responsabilidade para com o outro e para natureza. Uma tarefa que só pode ser realizada através de um longo processo de experimentação, construção de coalizões e reparações, começando pelas reconstruções feministas.
Fonte da imagem: Movimento de Mulheres Camponesas (mmcbrasil.org)
Referências
FEDERICI, Silvia. Feminism and the politics of the commons. 2011. Disponível em: http://wealthofthecommons.org/essay/feminism-and-politics-commons. Traduzido por Aline Rossi em: https://medium.com/feminismo-com-classe/feminismo-e-a-pol%C3%ADtica-dos-bens-comuns-63f6fb239f75.
FEDERICI, Silvia. A luta das mulheres e a produção dos comuns urbanos. 2022. Disponível em: https://outraspalavras.net/feminismos/reencantamento-do-mundo-segundo-federici/. Acesso em 23 jan 23.
TONUCCI, João Bosco Moura; CRUZ, Mariana de Moura. O comum urbano em debate: dos comuns na cidade à cidade como comum?. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 21, p. 487-504, 2019.
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