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Foto do escritorRafael Bosa

Resenha Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva

Atualizado: 3 de ago. de 2022




Em Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, Silva Federici traz um novo olhar para um período de ruptura na história (ocorrido no final da Idade Média), o final do feudalismo e o início do capitalismo. Geralmente quando se cita a instalação do sistema capitalista e como ele se impõem à sociedade e aos corpos dos indivíduos que participam disso, usa-se Marx e Foucault para explicar este acontecimento. No entanto, ao analisar estes estudos (durante 30 anos), Federici sente falta do olhar feminino, e constata como a exploração do corpo da mulher foi necessária para a instalação do sistema capitalista, e de como esse processo também afetou profundamente a mulher nativa na colonização do “Novo Mundo”, relatando como estas mulheres foram a principal resistência a imposição desse novo sistema.


Realizado durante quase três décadas, Calibã e a Bruxa foi originalmente concebido como uma contribuição para o movimento de libertação das mulheres e, em particular, para o combate a subordinação das mulheres aos homens — luta que foi a forca motriz do movimento feminista (FEDERICI, 2017). O nome do livro faz referência a obra de William Shakespeare “A tempestade” de 1610 – 1611, precisamente sobre dois personagens, o calibã apresentado como um homem negro escravizado e descrito como “deformado e selvagem”, que era filho da bruxa Sycorax. Na obra de Federici os personagens servem como símbolo do racismo e da misoginia, ambos sempre de mãos dadas com o capitalismo. O livro traz muita teoria, bastante informação, dados históricos, estudos, referências com notas de rodapé em quase todas as páginas, portanto, é uma leitura bastante densa e profunda. A estrutura é distribuída em 5 capítulos que tratam dos seguintes temas: Capítulo 1- O mundo precisa de uma sacudida os movimentos sociais e a crise política na Europa medieval; Capítulo 2 - A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres a construção da “diferença” na “transição para o capitalismo”; Capítulo 3- O grande calibã a luta contra o corpo rebelde; Capítulo 4- A grande caça às bruxas na Europa; Capítulo 5- Colonização e cristianização calibã e as bruxas no novo mundo;


O conteúdo inicia com a pergunta central: qual o papel das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo? Para Federici, nem os estudos de Karl Marx, no Capital, nem as pesquisas de Michel Foucault, na História da Sexualidade, consideraram a subordinação das mulheres como um aspecto crucial da transição ao capitalismo. Para ela, os estudos estabelecidos por Marx não levaram em consideração três pontos: o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal; e a mecanização do corpo proletário. Quanto a Foucault, Federici afirma que sua teoria estava muito atenta às práticas discursivas das relações de poder, e não tanto na origem do poder.

No contexto do início do capitalismo as mulheres eram consideradas “fábrica de gerar novos trabalhadores”, assim o corpo feminino é uma indústria que deve estar ao dispor dos homens. Estabelece-se que: a fábrica está para os homens, assim como o corpo está para as mulheres. A fábrica e o corpo são “locais” e “objetos” tanto de exploração, quanto de resistência.


Este é o ponto onde a caça às bruxas conecta-se com a criação e desenvolvimento do capitalismo. Federici argumenta que os assassinatos cometidos sob a justificativa da chamada caça às bruxas são um aspecto fundacional do sistema capitalista, uma vez que designou às mulheres o papel de “produtoras de mão de obra”, obrigando-as, pelo terror, a exercer gratuitamente os serviços domésticos necessários para sustentar os maridos e os filhos homens que seriam usados como força de trabalho do sistema nascente. A caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva, e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor.


Segundo Federici o capitalismo não surgiu de forma natural, e o feudalismo foi uma forma de trabalho mais coletiva que o capitalismo, existia uma divisão sexual do trabalho, no entanto não era isolada como acontece no capitalismo. Controle da igreja católica sobre os corpos, não só femininos, como também masculino (homossexualidade) foi uma forma, aliada ao capitalismo, de orquestrar “o genocídio de mulheres”. No Terceiro Concilio de Latrão (1179) foi condenado pela primeira vez a homossexualidade e o aborto, pois seriam duas questões que “atrapalhariam” a formação de novos trabalhadores.


O controle sobre o corpo de mulheres escravizadas negras também é pauta de discussão no livro. Quando a Inglaterra proibiu o tráfico negreiro transatlântico em 1845 através da lei Bill Aberdeen, a maneira encontrada para continuar produzindo novos escravos foi instituir o controle sobre o corpo das mulheres negras (fábrica), já que não podiam trazer novos escravos da África. Com a concepção do capitalismo ocorre uma naturalização do trabalho reprodutivo: “a mulher foi feita para reproduzir, isso é o trabalho feminino.” Este trabalho não tem valor, pois só o trabalho que gera produção para o mercado tem valor. Estabelecido o controle da população por parte do estado e da igreja, instaura-se um regime de patriarcado, obedecendo a seguinte lógica: + gravidez = + população = + excedente populacional = + capital = + barateamento da mão de obra (exército industrial de reserva).


O exército industrial de reserva pode ser definido como o maior número de trabalhadores reservas, para influenciar a quem está trabalhando a se sujeitar as péssimas condições de trabalho, ou seja, “se você não quer tem uma fila enorme de pessoas querendo seu lugar”. Desta forma, ter controle sobre o corpo feminino que produz esta mão de obra que é essencial é primordial para manter o sistema. As mulheres são excluídas do mercado de trabalho, servindo ao capitalismo como “fábricas de reproduzir”. A pior decorrência, para Federici, é que a reprodução dentro do sistema capitalista não é vista como um trabalho, mas como um dom natural, biológico; assim, paulatinamente as mulheres foram afastadas do trabalho e tornaram-se dependentes dos homens, que podiam trabalhar e deter o ganho do dinheiro na sociedade. A opressão das mulheres e seu afastamento do trabalho, segundo a autora, eram bases criadas para o sistema capitalista, e que funcionam até hoje.


Cinco pontos que foram fundamentais para desvalorizar a mulher como trabalhadora:

  1. Retirada de direitos sociais;

  2. A diferenciação sexual do espaço, ou seja, mulher seria restrita a um espaço privado e não mais ao espaço público;

  3. Divisão sexual do trabalho;

  4. A instituição dos papéis de gênero (meninas faz isso e menino faz aquilo);

  5. A depreciação literária e cultural da mulher.

A caça às bruxas não foi só uma forma de controle do corpo feminino (fundamental na transição do feudalismo para o capitalismo), mas também uma forma de controle do imaginário social. Neste período de transição a sociedade tinha muita influência da “magia” (misticismo). Esta por sua vez era um obstáculo na racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para estabelecimento do princípio da responsabilidade individual. A magia era uma forma de insubordinação do trabalho. A caça às bruxas só terminou (enfraqueceu) quando a classe dominante já tinha um sentimento de segurança no controle do capital.

Nas palavras da autora: “A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, de demonizá-las e de destruir seu poder social. Ao mesmo tempo, foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade. Também nesse caso, a caça às bruxas amplificou as tendências sociais de então. De fato, existe uma continuidade entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela nova legislação introduzida na mesma época com a finalidade de regular a via familiar e as relações de gênero e a propriedade” (FEDERICI, 2017, p. 334).


O prefácio da edição brasileira do livro traz um relato escrito por Silvia Federici em 2017, onde se descreve a relevância e a importância da teoria elaborada e discutida no livro. Para Federici trata-se de um livro-chave para entender por que, no começo do século XXI, depois de mais de quinhentos anos de exploração capitalista, a globalização ainda é movida pelo estado de guerra generalizado e pela destruição de nossos sistemas reprodutivos e de nossa riqueza comum, e por que, novamente, são as mulheres que pagam o preço mais alto. Observem o aumento da violência de gênero, especialmente intensificada em regiões como África e América Latina, onde a solidariedade comunal está desmoronando sob o peso do empobrecimento e das múltiplas formas de despossessão (FEDERICI, 2017, p.14 e 15 ).


Pensando dentro dessa lógica, este livro também é um desafio aos programas políticos que propõem reformar o capitalismo ou presumir que a expansão das relações capitalistas e a aplicação da tecnologia capitalista podem melhorar as condições de existência do proletariado mundial, ou ter como resultado a sua unificação política. Se é verdade, como o livro argumenta, que a produção de uma população sem direitos e a criação de divisões dentro da força de trabalho global são condições-chave para o processo de acumulação, então o horizonte de nossas lutas deve ser uma mudança sistêmica, já que precisamos excluir a possibilidade de um capitalismo com rosto humano (FEDERICI, 2017, p.14 e 15).


Igualmente importante é o fato de que Calibã e a Bruxa coloca a reprodução no centro da mudança política social, apoiando a visão de que, se não revalorizar nossa capacidade de cooperação mútua e as atividades que atendam a reprodução de nossas vidas, a política radical pode apenas racionalizar as contradições que o capital está enfrentando. Nesse sentido, a história está a serviço da política, pois ela confirma que, nas regiões onde povos oprimidos mantêm suas estruturas comunais e algum controle sobre as condições de sua reprodução, há maior sucesso na resistência à exploração (FEDERICI, 2017, p.14 e 15).


A editora Elefante faz uma brevê descrição da autora: Silvia Federici é uma intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma. Nascida na cidade italiana de Parma em 1942, mudou-se para os Estados Unidos em 1967, onde foi cofundadora do International Feminist Collective (coletivo internacional feminista), participou da Wages for Housework Campaign (Campanha por um salário para o trabalho doméstico) e contribuiu com o Midnight Notes Collective (coletivo notas da meia-noite). Durante os anos 1980 foi professora na Universidade de Port Harcourt, na Nigéria, onde acompanhou a organização feminista Women in Nigeria (Mulheres na Nigéria) e contribuiu para a criação do Committee for Academic Freedom in Africa (comitê para a liberdade acadêmica na África). Na Nigéria, pôde ainda presenciar a implementação de uma série de ajustes estruturais patrocinados pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Atualmente, Silvia Federici é professora emérita da Universidade de Hofstra, em Nova York.


Calibã e a Bruxa nos desperta a observar a história “contada” com outros olhos, nos instigando a perceber os reflexos desse período da história em nossos cotidianos, para que nos mantenhamos em constante (des)construção, permitindo que a história seja instrumento da luta por igualdade de condições entre homens e mulheres, no sentido de que ambos tenham os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Por isso, discutir questões que afetam as mulheres contribui para a formação de uma sociedade onde todos os corpos sejam respeitados e incluídos no debate.




Referência


FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.


Publicado originalmente em língua inglesa em 2004 pela Editora Autonomedia nos Estados Unidos. Publicado em língua portuguesa em 2017, traduzido pelo Coletivo Sycorax e publicado pela Editora Elefante em São Paulo.


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