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"¡VIVAS, LIBRES Y DESENDEUDADAS NOS QUEREMOS!”

  • Foto do escritor: Maria Rita Soares
    Maria Rita Soares
  • 5 de dez.
  • 4 min de leitura
Foto: Fabian Piedras, CTA Autónoma
Foto: Fabian Piedras, CTA Autónoma

“Uma leitura feminista da dívida”, livro de Luci Cavallero e Verónica Gago (2019), sustenta a insígnia: queremos estar vivas, livres e sem dívidas. Ao propor uma lente feminista para as finanças, as pesquisadoras argentinas e ativistas do Coletivo “Ni Una menos”, dão visibilidade para o endividamento privado e doméstico como uma questão política e de luta. O argumento central é que a dívida, no capitalismo contemporâneo, é um mecanismo de exploração e violência que afeta, principalmente, mulheres e corpos feminizados. Além de  identificar o problema, essa perspectiva aponta para possíveis horizontes de enfrentamento e desobediência.


Estabelecendo-se como uma ferramenta de investigação e intervenção política, a ideia central do livro é a de que a leitura feminista da questão financeira é urgente e necessária para o reconhecimento da dívida como um dispositivo privilegiado que relaciona o endividamento à violência de gênero e à exploração do trabalho reprodutivo, diretamente vinculado às mulheres. Além de uma análise acadêmica, o livro estabelece uma relação com a realidade, incluindo entrevistas com mulheres de organizações sociais na Argentina e no Brasil, detalhando como a dívida se articula com a precariedade laboral, a violência machista e a crise da reprodução social. Destaca, também, a necessidade de estruturação e fortalecimento de diferentes formas de desobediência e desacato financeiro coletivo.


Podendo ser entendida como um compromisso, uma obrigação [de qualquer natureza] a ser paga a alguém, a dívida é um conceito que permeia a história da humanidade. Na contemporaneidade, a discussão extrapola a economia tradicional e sua relação com a crise financeira, abrangendo a antropologia, a sociologia e a política. Sob essa ótica, pressupõe uma relação individualizada com uma economia que se baseia na exploração, tendo em vista sua relação direta com sentimentos de reconhecimento e aceitação, pagamento e gratidão.


Mas e se a dívida não for uma “falha pessoal” e sim uma ferramenta [ou estratégia] de um sistema político e econômico? Nesse sentido, a análise feminista revela que a dívida moderna é uma ferramenta de controle poderosa, muitas vezes invisível, que atua não apenas nos balanços nacionais, mas atinge e prejudica desproporcionalmente mulheres, pessoas não binárias e corpos feminizados, afetando diretamente os lares, relacionamentos e corpos.


Se os leitores querem saber o que é a dívida, trata-se de um compromisso que não está limitado apenas à questão financeira. É uma ferramenta de controle e violência que, subordinando as economias populares, obriga a aceitar trabalhos precários. Pensemos, portanto, de outro modo. Tratar a dívida como uma responsabilidade individual mantém oculto o seu poder político, mantendo a dívida como um fardo pessoal e vergonhoso, confinada no isolamento doméstico.


Neste sentido, o gesto feminista propõe tirar a dívida do armário, ou seja, dar visibilidade ao individamento e conceituar como funciona, desafiando o poder que a dívida possui de envergonhar e de se manter como assunto privado, além de conquistar espaço para discutir sobre as finanças em termos de conflitividade e autodefesa.


Tirar a dívida do armário (…) significa, antes de tudo, falar sobre ela. Narrá-la e conceituá-la para compreender como funciona. Investigar com quais economias se entrelaça. Tornar visíveis as formas de vida de que se aproveita e como intervém nos processos de produção e de reprodução da vida. Em quais territórios ganha força. Que tipo de obediências produz. Tirar a dívida do armário significa torná-la visível e colocá-la como problema comum. Desindividualizá-la. Porque tirá-la do armário implica desafiar seu poder de envergonhar e seu poder de funcionar como um “assunto privado”, diante do qual nos deparamos fazendo contas sozinhas (p. 11 - tradução nossa).


O endividamento possui impacto moralizante sobre a vida das mulheres e, portanto, é fundamental reconhecer o vínculo entre dívida e violências machistas. Reformulando a dívida não apenas como uma questão econômica, mas sobretudo criticando a financeirização da vida diária, Verônica Gago e Luci Cavallero oferecem uma análise sobre como o endividamento não é apenas um problema econômico abstrato, mas sim um dispositivo que se articula diretamente com a violência machista e a exploração diferenciada do trabalho feminino, afetando os diferentes contextos da vida quando consideramos gênero, raça e espaço. No horizonte das mulheres, a dívida funciona como um mecanismo de disciplinamento e significa tanto restrição quanto obediência, forçando, muitas vezes, a manter situações de precariedade e relações abusivas. Ainda, a dívida se apropria do tempo e do esforço das mulheres, limitando sua vida social, implicando nas relações familiares e de cuidado e impedindo que se engajem em lutas coletivas, por exemplo.


Outro ponto relevante levantado pelas autoras diz respeito aos programas sociais e aos subsídios estatais e como se tornam sistemas alimentadores de predadores financeiros, ao transformarem os beneficiários em alvos fáceis de endividamento. Considerando que, diante da precarização ou da falta de investimento em serviços públicos, o valor transferido pelos auxílios do governo são insuficientes para cobrir as necessidades básicas de manutenção da vida e de reprodução social, como moradia, saúde e educação. Essa lacuna é preenchida pela oferta de crédito, que, viabilizando o acesso ao endividamento, estabelece uma falsa ideia de inclusão, que na verdade explora quem já sofre inúmeras violências.


Portanto, reconhecer o enfrentamento da dívida como elemento central para a libertação feminina, apresenta-se como uma proposta de politização e sobretudo de resistência coletiva e de desobediência à dívida. Tendo em vista este entendimento da dívida como uma estratégia política, questionamos: o que significa, para nós, mulheres, desobedecer coletivamente?


Referências


"¡VIVAS, LIBRES Y DESENDEUDADAS NOS QUEREMOS!”: Slogan adotado pelo coletivo NiUnaMenos em um protesto em frente ao Banco Central da Argentina, no ano de 2017.


GAGO, Verónica; CAVALLERO, Lucía. Una lectura feminista de la deuda: ¡Vivas, libres y desendeudadas nos queremos! 1a ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Fundación Rosa Luxemburgo, 2019.



 
 
 

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