Fepesp, 2019.
Reunimos nesse post definições, considerações e reflexões atuais acerca do conceito de gênero a partir da percepção de que, embora desde os anos 80 apareça em publicações acadêmicas e nos discursos dos movimentos sociais (especialmente os feministas), ele ainda segue sendo construído, desconstruído e interpretado. Um importante motivo para que seja dada a devida atenção a este conceito é a constatação de que o gênero, enquanto padrão de organização social, estabelece relações de poder diferenciadas - embora não seja o único âmbito (Araújo, 2005), questão que segue em pauta tendo em vista a chamada “quarta onda feminista” (Hollanda, 2018).
Primeiramente é importante esclarecer que o gênero não são sexos (nem orientação sexual), sendo vinculado a construções sociais e não a características naturais. Tradicionalmente o gênero é identificado como um fator binário, quando, na realidade, há um espectro de identidades e expressões que o definem. O sexo refere-se a um conjunto de atributos biológicos em humanos e animais que estão associados a características físicas e fisiológicas e é geralmente classificado como feminino ou masculino, embora haja variação nos atributos biológicos que o constituem e como são expressos. O gênero, por sua vez, se refere aos papéis socialmente construídos, comportamentos e identidades e, assim, influencia a forma como as pessoas se percebem e percebem as outras, como se comportam e interagem e a distribuição de poder e recursos na sociedade (Heidari et al, 2016).
Ocorre que, como é sabido, as características físicas e biológicas das mulheres serviram de argumentos para justificar sua inferiorização, colocando-as em posição de desigualdade. Então, nas décadas de 1970 e 1980, o conceito de gênero passou a ser problematizado por teóricas feministas “insatisfeitas com as molduras que explicavam a condição da mulher no mundo” (Gomes Filho, 2016, p. 23). Daí surgiu a noção de gênero como um elemento instituído culturalmente. E foi neste contexto que Joan Scott (1995) teorizou o gênero como uma categoria de análise das relações de poder, assim como classe social e raça. Nessa perspectiva, o gênero é tido como a organização social da diferença sexual.
Ao longo do tempo o conceito de gênero foi sendo desenvolvido por diversas disciplinas. Em 1995, Maria Eunice F. Guedes, em seu artigo ‘Gênero, o que é isso’, buscou rastrear o conceito no âmbito do seu significado linguístico, passando pela utilização do termo pelos movimentos de mulheres e pela academia. Naquele momento a autora considerou importante discutir o conceito que para ela, ainda não se encontrava bem delimitado pelos vários ramos das ciências humanas e naturais. Quatro definições indicadas no trabalho ilustram o quanto o conceito abrange diferentes recortes: 1) “qualquer agrupamento de indivíduos, objetos, ideias, que tenham caracteres comuns” (Dicionário Aurélio, 1986); 2) “uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado” (Gates, apud Scott, 1995); 3) “um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos… o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (Scott, 1995); e 4) “uma forma de entender, visualizar e referir-se à organização social da relação entre os sexos.” (Guedes, 1995).
Heloísa Buarque de Hollanda (2018), na introdução do livro ‘Explosão Feminista’, aponta que a antropóloga estadunidense Gayle Rubin utlizou pela primeira vez o termo gênero, no artigo ‘Pensando sexo: Notas para uma teoria radical da política da sexualidade’, publicado em 1984. Nele, a autora afirma a existência de um sistema sexo-gênero, associado à própria passagem da natureza para a cultura, onde o indivíduo tem sua sexualidade, sua libido e sua identidade de gênero domesticadas de acordo com as regras criadas por este sistema.
Em 1985, Donna Haraway publicou ‘Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX’ que, segundo Hollanda (2018), promoveu um avanço radical nos debates feministas. O manifesto se posiciona contra os essencialismos do ativismo feminista da época e apresenta uma criatura pós-gênero que apaga todos os marcadores binários das definições identitárias, abrindo espaço para novas formas híbridas de sexualidade. Na sequência, em 1987, a professora e escritora feminista italiana Teresa de Lauretis trouxe a noção de "tecnologias de gênero", as quais imprimem nos discursos sociais a ideia do que é ser homem e ser mulher, adequando os corpos aos limites de cada gênero, domesticando o desejo e impondo normas a serem seguidas.
Em 1990, a publicação ‘Problemas de Gênero’ de Judith Butler será considerada o ponto de virada nas reflexões acadêmicas sobre gênero, sistematizando o pensamento feminista mais radical da década de 1980 e avançando com a noção de devir gênero, nos moldes do devir mulher, de Simone de Beauvoir (Hollanda, 2018). O devir gênero implica necessariamente na noção de performatividade de gênero, permite o estudo das diversas configurações culturais de sexo e gênero e põe em cena o feminismo queer. Para Butler, não é possível falar em teoria queer sem pensarmos na categoria gênero como sendo algo fluido, socialmente construído, performado e sistêmico, sendo a identidade de gênero escolhida, formada, e não imposta. Judith Butler é, sem dúvida, uma das vozes de maior eco quanto a definição de gênero, masculinidade e feminilidade em termos de performances, de normas internalizadas em forma de estilo corporal de representação e teatralização pública.
Mais recentemente, o filósofo e escritor transgênero Paul Preciado (2017), em sua obra ‘Manifesto contrassexual’ traz a noção de tecnologia como uma categoria-chave ao redor da qual se estruturam as espécies (humana/não humana), o gênero (masculino/feminino), a raça (branca/negra) e a cultura (avançada/primitiva). As tecnologias de gênero se materializam por ação de um conjunto de instituições domésticas, médicas e linguísticas que não são neutras e que produzem constantemente diferenças entre corpos-homem e corpos-mulher, a fim de estabelecer argumentos que comuniquem e autorizem a sujeição dos corpos-mulher ao trabalho sexual para transformá-los em meio de reprodução (Preciado, 2017).
Para o autor, o gênero além de performativo como estabelece Butler é, antes de tudo, prostético, ou seja, se dá na materialidade dos corpos, que se tornam espécies de arquivos da história da produção-reprodução sexual da humanidade, onde alguns códigos são naturalizados, enquanto outros devem ser sistematicamente eliminados ou riscados. Afirma que a indústria biopolítica e sua cultura do corpo plástico, com tecnologias sofisticadas em constante evolução (próteses de silicone, cirurgias plásticas, hormonização, fisiculturismo…), fabrica corpos sexuais e permite performances de gênero que, se por um lado se originam das estruturas de poder, por outro, constroem possibilidades de resistência (Preciado, 2017).
Já no campo da arquitetura, segundo as autoras do livro ‘Gender Space Architecture: an Interdisciplinary Introduction’, as primeiras pesquisas de autoras feministas também surgiram na década de 1970. Em 1992, com a publicação de ‘Sexuality and Space’, Beatriz Colomina chama atenção para a importância do olhar multidisciplinar para a crítica em arquitetura, através dos conceitos de gênero adotados pela antropologia, filosofia, psicanálise, geografia, história da arte e do cinema (Rendell et al., 1988).
Do ponto de vista operacional da produção de dados, para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), gênero compreende as estatísticas sobre a forma como a sociedade cria os diferentes papéis sociais e comportamentos relacionados aos homens e às mulheres, criando padrões do que é próprio para o feminino e para o masculino e a partir destas compreensões estabelecem relações diversas e/ ou desiguais nas várias dimensões da vida social. O Sistema Nacional de Informações de Gênero (SNIG) integra o projeto de estruturação de um Programa de Estatísticas de Gênero no IBGE, cuja primeira versão data de 2006 e baseou-se nos dados censitários de 1991 e 2000. O SNIG permite o acesso a indicadores de gênero classificados por tema (deficiência, domicílios, educação, famílias, população...).
Talvez, em certa medida, na busca por afirmar o “conceito de gênero como categoria social composta de normas e comportamentos impostos, que definem os papéis desempenhados por homens e mulheres, configurando as relações de poder entre os sexos” (Feitosa e Nogueira, 2013, p. 212), a perspectiva eminentemente feminista tenha contribuído para que o gênero seja historicamente relacionado com categorias binárias. No entanto, na atualidade, diante de novos estudos e olhares sobre o conceito, faz-se necessário assimilar que a sua conotação é ampla e complexa, englobando desde a maneira como o gênero é apresentado/expressado, até a possibilidade de identidades cada vez mais fluidas que podem também representar resistência aos códigos sociais impostos. Ainda, ao analisarmos as relações sociais, é preciso articular o gênero com outras dimensões, de forma interseccional, compreendendo que as mulheres e os homens não constituem grupos homogêneos como o sistema binário heteronormativo e patriarcal tenta estabelecer.
Colaboraram neste post: Andréa Viana, Geisa Bugs, Kátia Oliveira e Rafael Bosa.
Imagem: http://fepesp.org.br/noticia/diversidade-de-genero-e-orientacao-sexual-e-assunto-de-escola/
Referências:
ARAÚJO, Maria de Fátima. Diferença e igualdade nas relações de gênero: revisitando o debate. Psicol. clin. v.17 n.2, 2005.
BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Nova Iorque: Routledge, 2006.
FEITOSA, Maria Luiza Alencar Mayer; NOGUEIRA, Andrezza Rodrigues. Gênero e desenvolvimento: trajetórias da luta pela equidade de gênero nas relações econômicas do trabalho. In LOPES, Ana Maria D’Ávila; MAUÉS, Antonio Moreira (Orgs.). A eficácia nacional e internacional dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 207-223.
GOMES FILHO, Miguel. (Homo) sexualidades e Foucaut: para o cuidado de si. Appris editora, p. 23. 2016, em MIRAGLIA, Lívia Mendes Moreira; TEODORO, Maria Cecília Máximo; SOARES, Maria Clara Persilva (Orgs.). Feminismo, trabalho e literatura: reflexões sobre o papel da mulher na sociedade contemporânea. Porto Alegre, RS. Editora Fi, 2020.
GUEDES, Mª Eunice Figueiredo. Gênero, o que é isso?. Psicologia: Ciência e Profissão. v. 15, n. 1-3, pp. 4-11, 1995.
HEIDARI, S., BABOR, T.F., DE CASTRO, P. et al. Sex and Gender Equity in Research: rationale for the SAGER guidelines and recommended use. Research Integrity and Peer Review, 2, 2016.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2018
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Descrição de Gênero. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero. Acesso em: 04 ago de 2021.
PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1 edições, 2017.
REIS, Maíra Lopes. Estudos De Gênero Na Geografia: Uma Análise Feminista da Produção Do Espaço. Espaço e Cultura, n. 38, p. 11-34.
RENDELL Rendell et al. Gender space architecture: an interdisciplinary introduction. 1988.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade, v. 20, nº. 2. Porto Alegre: UFRGS, 1995, pp. 71 – 97.
Comments