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Fazendo vidas e ciência, um ensaio sobre a maternidade como método

  • Foto do escritor: Dayana de Cordova
    Dayana de Cordova
  • 10 de mai.
  • 4 min de leitura


Faltando um ano para a entrega de minha tese de doutorado, nasceu Martina, minha filha mais velha. Como antropóloga-mãe, ou mãe-antropóloga, estava embarcada na maior pesquisa de campo que poderia (e posso) fazer. Uma experiência longa e que passaria a ser onipresente em minha vida, que a desorganizou e hoje, oito anos depois, só permite reorganizações precárias e temporárias.


Bem, eu tinha uma tese para escrever em um curto período de tempo que já estava em sua maior parte comprometido com o feitio de uma pessoa. Sim, feitio: vidas não estão dadas, elas precisam ser urdidas diariamente. As mãos que cuidam, as tetas que amamentam, fazem vidas. E, fazendo uma vida, escrevi minha tese: criança na teta, dedos no teclado. A psicanalista Flávia Cêra, que teve bebê um pouco antes de mim e já havia me ensinado que não precisaria de um berço porque viraria um mero depósito de roupas para guardar, logo me deu a letra de algo que aprendeu ouvindo outra mulher e a partir da sua própria experiência: a maternidade muda a cadência e a lógica do pensamento, muda o artesanato intelectual. E não, não era sobre uma transformação romântica de visão de mundo e de prioridades a partir do amor de mãe. Era sobre método. Um método que não envolvia mais horas e horas de imersão em um texto, na biblioteca, na sistematização de dados, de um processo de trabalho controlado, mas um novo espaço-tempo e, acrescento, uma vida-acadêmica que se tornou uma vida-mãe-acadêmica e, portanto, um compósito de vidas.


De fato, não há como pensar e escrever do mesmo modo depois de um filho. O tempo e o espaço não têm mais a mesma configuração, alguma coisa se desloca.

[...] Aqui já não cabe mais um tom de desculpa por um não ter feito mais ou melhor, trata-se de assinalar um método. Neste momento em que cuido de um bebê, momento em que leio, cozinho, brinco, dou colo, em que o ajudo a ler o mundo, em que imprimo letras para que ele possa ler, escrever, e tramar suas letras, seus textos no mundo, o que outrora seria o inacabado ou imperfeito, ganha, para mim, o status radical de começo, de começo da vida, de começo do texto, começo de leitura. Então é a partir dessa experiência vital, desse lugar inédito, absolutamente atravessada pelo corpo, pela bagunça, choros, sorrisos, pelos ruídos de pura língua, pelos começos de palavras, pelo cansaço e pela alegria, por esse que veio de mim e é outro, desse ponto inquietante e êxtimo, dessa experiência que se escreve no meu corpo: só assim e com tudo isso poderei escrever algum texto. (Cêra, 2016, online).


Com o passar do tempo, fui encontrando outras mulheres-pesquisadoras-acadêmicas-cientistas-mães que compartilhavam experiências de trabalho muito similares e desafios particulares em relação a colegas não cuidadores. Nos acolhemos entre textos não escritos em #MadrugadasComCriançasDoentes; entre referências importantes lidas ao longo de tardes de #FériasDasCriançasMasNãoDaMãe entrecortadas por roupas penduradas + comidas feitas + fraldas trocadas + “mãe, quantos dedos tem uma lagartixa?” + beijinhos e abraços + gritos + choros e risadas; entre #ConcursosQueNãoPassamos feitos em cidades distantes, com medo de  que nossos bebês desmamassem porque não tivemos condições de viajar com eles + um cuidador,  ardendo em febres de mastites provocadas pelo leite empedrado em #TetasCheiasOndeNenhumNebêMamaHáTrêsDias. Me vi, então, em meio a um coletivo de mulheres-mães-antropólogas que entenderam que essas experiências que pareciam tão particulares não eram nada individuais e que sentiam necessidade de compartilhá-las com a comunidade acadêmica como um todo – afinal, fazer vidas não é um problema pessoal, tal qual vem sendo tratado por muitos de nossos colegas, mas uma necessidade coletiva que suporta sociedades, culturas, a própria academia e a ciência, por mais que essas últimas tenham uma certa dificuldade de lidar com o fato de que são feitas de #PessoasHumanasCheiasDeHumanicesEQueTêmCorposEVidasQueExtrapolamATorreDeCristalAcadêmica.


A partir disso, começamos a nos organizar na medida do impossível para escrever sobre o assunto, fazer mesas redondas, discutir a questão de diferentes perspectivas. Eu dava há anos aulas na Especialização em Antropologia Cultural da PUC/PR e elas, nos idos de 2020, se tornaram remotas em função da pandemia de covid-19. Como forma de aumentar a acessibilidade dos alunos, as aulas passaram a ser gravadas. Eventos como palestras e reuniões também começaram a acontecer remotamente e, em sua maioria, ficavam registrados. Na minha memória estavam tatuados diferentes momentos em que minha filha mais velha atravessava meu #TrabalhoReconhecidoSocialmenteEnquantoTalENoQualNãoSeEsperaUmaCriança. Isso se dava de um modo muito similar àquele período não registrado antes da pandemia ou em momentos-não-públicos do trabalho de uma antropóloga, como o preparo de aulas, momentos de leitura e escrita ou mesmo durante pesquisas de campo. Mas agora existia um acervo de registros do meu trabalho na internet. E mais, existia também uma outra bebê, de menos de um ano, e as mãos e colos que cuidavam das pequenas enquanto eu trabalhava nem sempre eram suficientes: em alguns momentos as crianças vazavam delas. Então, vi nesse acervo de registros de trabalho a possibilidade de mostrar como o fazer acadêmico e científico é atravessado pela experiência do cuidado, particularmente da maternidade. 


Muito lentamente, comecei a trabalhar tal material. A lentidão era, em grande medida e para além do #TrabalhoDeCuidadoQueNãoÉReconhecidoEnquantoTalEQueTomaAMaiorParteDoTempoDasCuidadoras, relativa à dificuldade de lidar com a pessoalidade do material e os afetos que ele me gerava, assim como com a autotraição de tratar como matéria-prima de uma produção acadêmica coisas que não foram realizadas com essa intenção – bem-feito para mim que, como antropóloga, estudo #VidasHumanasQueNãoSãoVividasParaSeremPesquisadas. E, mais, era um acervo com situações que a sociedade diz que devemos esconder porque elas são lidas como sinais de ineficiência. Levei dois anos para criar o distanciamento necessário desse material todo e chegar a algo que expressasse ao menos parte das questões acima colocadas, o ensaio audiovisual em baixa resolução Antropológicas maternas.


Contei essa história toda para convidar quem me lê a assistir o ensaio Antropológicas Maternas, que ganhou a menção honrosa no Prêmio Mariza Peirano 2023, na categoria ensaio audiovisual, e que foi publicado agora, em 2025, na revista Novos Debates. Fórum de Antropologia. A publicação pode ser acessada aqui. Se você quiser assistir ao vídeo diretamente, ele está aqui.


Referências:


CORDOVA, Dayana de. Antropológicas Maternas, Novos Debates, [S. l.], v. 10, n. 2, 2025. DOI: 10.48006/2358-0097/V10N2.E102006. Disponível em: https://novosdebates.abant.org.br/revista/index.php/novosdebates/article/view/402. Acesso em: 9 maio. 2025.  


CÊRA, Flávia. Pequena nota sobre o método, Voltar a partir, set. 2016. Disponível em: https://voltarapartir.wordpress.com/2016/09/. Acesso em: 08 mai. 2025.


 
 
 

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