Pensar a partir do feminismo: críticas e alternativas ao desenvolvimento' de Alba Margarita Aguinaga Barragán (docente e pesquisadora na Universidade Regional Amazónica), Miriam Lang (docente e pesquisadora na Universidad Andina Simon Bolivar), Dunia Mokrani Chávez (cientista politica e mestranda na Universidad Mayor de San Andrés) e Alejandra Santillana Ortiz (socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudos Equatorianos), que no Brasil foi originalmente publicado em Dilger et al (2016), é um dos 22 capítulos do livro ‘Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais’, organizado por Heloísa Buarque de Holando e publicado em 2020.
O pensamento decolonial feminista contesta leituras hegemônicas sobre a mulher. As autoras iniciam o capítulo afirmando que o momento exige a construção de um pensamento emancipatório que tenha como ponto de partida a diversidade e a potencialidade da vida, mas com um olhar holístico sobre sua totalidade, ao reivindicar uma crítica feminista sobre o discurso do desenvolvimento. O texto se articula em várias dimensões - ecologia, economia, modelo produtivo, colonialidade e patriarcado - para, numa trajetória histórica, abordar diferentes leituras feministas do desenvolvimento. Neste post, sintetizamos algumas ideias que podem e devem ser lidas na íntegra no livro.
Anos 1970 - mulheres no desenvolvimento
As críticas feministas ao conceito de desenvolvimento começaram a se articular nos anos 1970. Na obra ‘O papel das mulheres no desenvolvimento econômico', a economista dinamarquesa Ester Boserup crítica o desenvolvimento por promover a exclusão das mulheres.
Até então as mulheres eram incluídas nas políticas de desenvolvimento como receptoras passivas, desconsiderando que em muitas culturas as mulheres trabalhavam na agricultura e na produção de alimentos, por exemplo. Na primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1975 no México, as Nações Unidas declararam os anos 1980 como a ‘Década da Mulher’, institucionalizando o enfoque das mulheres como parte do desenvolvimento.
A introdução do conceito ‘Mulheres no Desenvolvimento’ (WID - Women in Development) permitiu a criação de numerosas ONGs que se propunham a facilitar o acesso das mulheres aos fundos. Outra corrente, ‘Mulheres e Desenvolvimento' (WAD - Women and Development) embora seja mais analítica, enfatiza o trabalho produtivo à custa do trabalho reprodutivo das mulheres.
Ambos focalizaram a geração de renda para as mulheres sem considerar as consequências disso em termos da jornada dupla de trabalho, segundo as autoras. As mulheres sempre integraram os processos de desenvolvimento, e o seu trabalho, tanto dentro quanto fora de casa, sempre contribuiu para a manutenção de suas respectivas sociedades.
Anos 1980 - gênero no desenvolvimento e feminismo socialista
Nos anos 1980 o gênero aparece como categoria central da globalização. Até o final dos anos 1980, as mulheres latinoamericanas ainda não eram consideradas sujeitos de seguridade social direta, sujeitos econômicos ou cidadãs plenas.
O enfoque construtivista 'Gênero e Desenvolvimento’ (GAD - Gender and Development) considera que ambos os gêneros são construções sociais e que as mulheres são marcadas também por outras categorias de dominação como origem étnica, idade, etc. O GAD critica a lógica de que a mudança econômica por si só resultará em empoderamento, e, por conseguinte, as políticas de microcrédito, pois não questionam a dominação que muitas mulheres sofrem. Propõe a equidade como objetivo.
Também o feminismo socialista olha as mulheres como agentes de mudança e enfatiza a necessidade de organização para construção de representações políticas.
Necessidades práticas e necessidades estratégicas
Nessa época, Caroline Moser desenvolveu um esquema de planejamento de gênero para os programas de desenvolvimento que fazia distinção entre as necessidades práticas, que correspondem aos acesso a serviços básicos como alimentação, e as estratégicas, que questionam a subordinação das mulheres no sistema de gênero.
O enfoque foi largamente acolhido por organismos internacionais. Porém, na visão das autoras, não tem conseguido cumprir os objetivos práticos pois situa-se na visão tecnocrática inerente às políticas de desenvolvimento que pretendem abordar problemáticas complexas a partir de uma caixa de ferramentas supostamente universal.
Políticas neoliberais e feminização da pobreza
No contexto neoliberal, a visibilização das mulheres implicou que muitas se incumbiram das políticas sociais deixadas de lado pelo Estado. Elas tiveram que se encarregar da geração do autoemprego e a submeter-se a condições de desigualdades no mercado de trabalho, onde sofriam discriminação salarial. A modificação patriarcal dentro da família e no espaço público iniciou um ciclo de empobrecimento feminino.
Alternativas a partir do sul
Durante a segunda Conferência Mundial sobre a Mulher, no Quênia em 1985, o grupo ‘Desenvolvimento para Mulheres em uma Nova Era’ (DAWN - Development for Women in a New Era) rechaçou a definição do progresso como desenvolvimento econômico, e criticou a superexploração das mulheres mediante sua “integração ao desenvolvimento", instrumentalizando-as para compensar cortes de gasto público social.
As feministas do Sul criticaram as políticas de desenvolvimento como uma forma de continuação do colonialismo e reivindicaram o desenvolvimento econômico como uma ferramenta para o desenvolvimento humano.
A corrente socialista feminista, por sua vez, evidenciou como a feminilização de certos empregos (magistério na educação primária, p. ex.) levou a desvalorização salarial e de status social de profissões tidas como “trabalho de mulher”.
Feminismos pós-coloniais
A partir dos anos 1990, feministas do Sul passaram a questionar o feminismo hegemônico - etnocentrismo ancorado no Norte global. O uso de uma categoria homogênea de mulher, em específico a “mulher do Terceiro Mundo”, para Chandra Talpade Mohanty, reduz as mulheres a sua condição de gênero e ignora outros fatores determinantes de sua identidade. Para ela, o universalismo etonocentrico feminista é uma forma de colonizar, ao julgar as diversas culturas do Sul global “subdesenvolvidas” tendo por referencia os padrões ocidentais. Mohanty propõe um feminismo transcultural, no qual as reivindicações culturais tornam-se fontes de transformação a partir do reconhecimento da diferença.
Ecofeminismos
Num horizonte de transição rumo a alternativas de desenvolvimento, o debate ecofeminista assinala a existência de importantes paralelos entre a opressão das mulheres e a exploração da natureza. Nos discursos patriarcais, a dicotomia mulher/homem, natureza/civilização, emoção/razão, desvaloriza sempre a primeira categoria.
A corrente essencialista parte do pressuposto de que as mulheres são, por essência, mais inclinadas à defesa dos seres vivos e da ética do cuidado, em função do instinto maternal. No entanto, outra corrente rechaça essa visão e considera que a consciência ecológica de gênero nasce das divisões de trabalho e papéis sociais estabelecidos.
Nessa perspectiva, Maria Mies assinala que o trabalho do cuidado, a reprodução, os pequenos produtores, e a própria natureza como provedora de recursos naturais são invisibilizados, apesar de constituírem o sustento do modelo de acumulação capitalista. Este ignora os custos sociais e ambientais do desenvolvimento e só considera, nos indicadores tipo PIB, o trabalho que contribui diretamente para a geração de mais valias, sem estabelecer vínculo com o bem-estar humano.
Há também ecofeministas que constroem reflexões a partir da teologia feminista e questionam o discurso hegemonico da modernidade, no qual a mulher é subordinada às relaçoes matrimoniais e à familia, e a natureza passa a ser dominada pelo espirito cientifico masculino.
Economia feminista e economia do cuidado
As economias feministas desconstroem mitos como o de que o mercado funciona de maneira neutra e gera bem estar para todos. Ademais, nesta visão, o mercado não é o único âmbito em que se realizam atividades econômicas e o trabalho não remunerado do lar gera valor econômico na medida em que mantém a força de trabalho das pessoas desse lar (em consonância com Silvia Federici em ‘O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista’). Assim, não apenas pretendem viabilizar o valor económico e a produtividade do cuidado, mas também conscientizar sobre a superexploração das mulheres.
Este debate relaciona-se com o próprio conceito de desenvolvimento. Annemarie Sancar denuncia que até hoje nas orientações de programas de desenvolvimento não foram tão decisivos os direitos das mulheres, mas os desejos de crescimento de economias neoliberais que as descobriram como empresárias.
A economia do cuidado identifica a atividade como uma das mais importantes para se viver uma vida digna (o tema ganhou evidência nos debates em torno da pandemia Covid 19), a qual, no entanto, até então foi completamente ignorada pelo discurso político e pelo reducionismo economicista do desenvolvimento. A economia do cuidado aspira que o trabalho do cuidado seja colocado no centro das estratégias políticas, que devem fomentar ações comunitárias e a democratização do uso do tempo para permitir tempo de ócio às mulheres.
O feminismo e os governos neodesenvolvimentistas da América Latina
Existe uma tensão entre a corrente que reivindica a inclusão irrestrita das mulheres na promessa de desenvolvimento e que costuma questionar institucionalmente o patriarcado, e outra, mais à esquerda, que questiona a política de transferência condicionada a mulheres pobres. Esta última pensa nos feminismos a partir da base, do popular e do comunitário.
Feminismos andinos, populares e comunitários
Neste contexto, surge, sobretudo no Equador e na Bolívia (vide eleição recente em que as mulheres bateram recordes no parlamento), um feminismo que passou a ser chamado de comunitário e popular. São feminismos que situam um novo tipo de universalidade, em que as diversidades sexuais e raciais são assumidas com toda a sua carga colonial, de classe, e de relação com a natureza. São mulheres camponesas, indígenas e negras que ressignificam o feminismo a partir de seus contextos, experiência, produções culturais da vida cotidiana e situação trabalhista.
Conclusão
As autoras concluem que as variadas correntes feministas que têm dialogado com o desenvolvimento, o fazem sob uma perspectiva de crise civilizatória, que somente pode ser solucionada encarando as diferentes dimensões de dominação. Essas mulheres falam a partir da relação de saberes, da relação simbólica de respeito, sabedoria e sentido de propriedade comunitária, a partir da Pachamama para transformar a sociedade em seu conjunto, para além dos direitos individuais.
Referências
BARRAGÓN, Margarita; LANG, Miriam; CHÁVEZ, Dunia M.; SANTINALA, Alejandra. Pensar a partir do feminismo: críticas e alternativas ao desenvolvimento. In: HOLANDA, Heloisa B. (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1ª ed., Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.
DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge (orgs.). Descolonizar o imaginário: Debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo: Fundação Rosa de Luxemburgo, 2016.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Ed. Elefante, 2019.
***
Crédito da Imagem: Flickr - Antioch Education Abroad. Graffiti em Bariloche. Artista: Laura Nitzsche et. al.
Comments