A estabilidade das identidades, a totalidade das formas de ser, a captura dos corpos e subjetividades são processos que estabilizam o mundo. Entre todas essas categorias, o gênero é a principal, uma ordem primária no exercício do poder, de acordo com Helena Vieira, transfeminista, escritora e ativista LGBTQIAP+. Estes processos operam através da proposição: ou se é homem ou se é mulher, categorias estas produzidas por construções discursivas que envolvem o Estado, a religião e a família. Conforme Letícia Nascimento professora da Universidade Federal do Piauí, pesquisadora, travesti negra e referência nos estudos decoloniais, a binaridade de gênero surgiu em uma determinada historicidade e contexto, portanto, não existiu sempre. O gênero é uma categoria artificial e ficcional, que nos é ensinado a performar desde que nascemos.
Dentro da visão binária a categoria ‘mulher’ é historicamente subalternizada pela categoria ‘homem’. Os movimentos feministas surgem como forma de luta das mulheres contra a violência da opressão patriarcal (operada pela categoria ‘homem’). O pensamento linear da história centraliza as lutas feministas em determinadas mulheres. Djamila Ribeiro cisgênera, filósofa, feminista negra, escritora e acadêmica brasileira, contesta em sua obra a formulação do feminismo por ondas. Segundo ela, a história do feminismo assim posta nos remete a falsa noção de que no feminismo de primeira onda só existiam mulheres brancas. Precisamos chacoalhar essas categorias para gerar novos tensionamentos, ampliar os horizontes e lugares de falas.
Desta forma, surgem diferentes correntes dentro do feminismo, alguns exemplos podem ser citados: o feminismo negro que busca incluir o marcador raça nas experiências de gênero, para compreender as vivências das mulheres negras, lutando por uma sociedade antirracista; o feminismo lésbico que traz a ideia de separatismo dentro do contexto feminista como prática política de separar-se cultural, política, afetiva e sexualmente de homens e focar suas energias em relações com mulheres, eróticas ou não; o ecofeminismo sustenta que a defesa do meio ambiente constitui parte essencial do movimento feminista; o transfeminismo que questiona a dimensão biológica do sexo, trazendo a discussão sobre cisgeneridade e as relações de poder instituídas na vivência de gênero de travestis e transsexuais. É importante ressaltar que pensar o feminismo em correntes não significa dividir o movimento, mas como diz Grada Kilomba cisgênera, feminista negra, escritora, psicóloga, teórica e artista, trata-se de nomear as experiências para deixá-las visíveis tanto na teoria, quanto na história pois, a invisibilidade resulta em morte. As diferentes correntes do feminismo não se sobrepõem e sim se entrecruzam, existindo interseccionalidades a serem discutidas. A interseccionalidade no feminismo encontra-se nas diferentes maneiras de enfrentar as mesmas existências e resistir às opressões.
O transfeminismo, segundo Letícia Nascimento, questiona profundamente a dimensão biológica que ainda ronda o espectro da categoria gênero, principalmente a categoria ‘mulher’, observando que esta categoria não está ligada à questão de ter ou não uma vagina. Existem possibilidades de construção do gênero, onde Letícia Nascimento demarca a ideia de mulheridade e feminilidade para analisar a categoria ‘mulher’. Ela alerta para o perigo de se universalizar as experiências de “ser mulher”. As vulnerabilidades enfrentadas pelas mulheres passam por construções discursivas. Não é a anatomia do corpo feminino ou a vagina que define a vulnerabilidade desse corpo, e sim, a construção discursiva que cria essa anatomia e a identifica como vulnerável e determina esse corpo como inferior ao corpo masculino, e, portanto, pode ser subjugado, abusado e violentado.
Quem é o sujeito do feminismo? Respostas generalistas afirmam que são as mulheres. No entanto, as categorias ‘mulher’ e ‘homem’ são instáveis, diz Helena Vieira. A falsa estabilidade se apoia na ideia binária estabelecida entre sexo/gênero que compulsoriamente estabelece gênero por meio da genitália, logo temos a lógica: vagina/ mulher/feminina versus pênis/homem/masculino. O que é ser mulher? Indaga Helena Vieira. A naturalização construída pela biologia diz que isso se verifica a partir da genitália externa. O transfeminismo filia-se ao feminismo e diz que gênero é determinado socialmente e historicamente. Uma das maiores contribuições do transfeminismo é a crítica ao cissexismo e seus discursos. O discurso cisgênero é social e histórico, não há uma pretensa verdade inscrita em alguma ordem biológica.
O transfeminismo é em seu aspecto teórico o aporte de compreensão dos corpos trans e em seu aspecto político-social um movimento, uma luta pela inclusão das pessoas trans no mundo, reivindicando a legitimidade dos corpos trans. Amara Moira transsexual, transfeminista, escritora e professora de literatura explica que podem existir homens com vagina e mulheres com pênis sem haver necessidade de intervenção cirúrgica. Isso quebra a crítica de que só é possível defender as identidades de pessoas trans através de um pretenso reforço de estereótipos. Como também existem pessoas que não se identificam com nenhuma destas categorias socialmente identificadas (homem/mulher), indivíduos estes denominados como não-binários.
À vista disso, a cisgeneridade é um conceito central dentro do transfeminismo. O pensamento cisgênero envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo (morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances (de gênero) é percebido como coerente pela sociedade. Em suma, é a pessoa que foi designada ‘homem’ ou ‘mulher’ ao nascer e sente-se bem com isso, sendo percebida e tratada socialmente, medicamente, juridicamente e politicamente como tal (Blog transfeminismo).
Letícia Nascimento explica que o conceito de cisgeneridade demarca um posicionamento diferente do que é estabelecido a quem nasce dentro do conceito desses dois gêneros (feminino ou masculino) e burla com esse sistema, tendo outra posição, neste caso a transgeneridade, assim sendo é tratado diferente. O conceito de cisgeneridade não tem pretensão de fazer ranking de opressão e de interseccionalidades, mas sim marcar a forma como o gênero é vivido, sem estabelecer uma disputa e tentar igualar as opressões sofridas.
A vivência das mulheres transsexuais é diferente das mulheres cissexuais. Mas isso não implica em uma hierarquia (legítima ou ilegítima), segundo Helena Vieira, serve para auxiliar na compreensão de suas semelhanças e produzir alianças. Para a escritora o feminismo de segunda onda denuncia o caráter socialmente construído do "ser mulher", não há uma essência feminina, e sim, uma formatação cis-heteropatriarcal sobre a mulher (brandura, maternidade e submissão). Contestar a "natureza feminina" é construir estratégias de resistência dos mecanismos de dominação e controle sobre o corpo da mulher. Audre Lorde escritora feminista, lésbica e ativista dos direitos civis afirmava que não existe hierarquia de opressão, que há a necessidade de entender as muitas opressões e acessos que estas submetem os corpos.
O conceito é entender como ocorrem as vulnerabilidades. Se nós olharmos o modo pelo qual as mulheres travestis são assassinadas neste país, encontramos a mesma brutalidade dos crimes de cisfeminicídio. Vivemos em um país colonial construído a partir do ódio a tudo o que é feminino. Por isso que homens homossexuais que tem uma leitura feminina são mais violentados do que os mesmos homossexuais que produzem uma leitura mais cis-heteronormativa. E por quê? Não são homens? Qual a diferença?
O ódio a tudo que é feminino é um dos pontos de ligação entre o feminismo e o transfeminismo, que surgiu com o afastamento do movimento trans de algumas pautas do movimento LGBTQIAP+, historicamente conduzido por homens brancos gays. As demandas de ordem sexuais das pessoas transsexuais e travestis fazem ligação com o movimento LGBTQIAP+; já o transfeminismo faz relação com as demandas de identidade de gênero; ambas somam-se na luta pela causa trans. Há um apagamento histórico no levante coletivo contra a violência e a favor da comunidade LGBTQIAP+ ocorrido em Stonewall em 28 de junho de 1969 (dia marcado como ‘dia do orgulho LGBTQIAP+’) liderado por Marsha P. Johnson travesti negra, drag queen e ativista pela libertação LGBTQIAP+ e contra a segregação racial nos Estados Unidos. Pessoas trans estiveram e estão na linha de frente da luta por direitos desta comunidade. A comunidade LGB+ Cis, principalmente a branca, tem uma dívida histórica com as pessoas trans, e precisam reconhecer as contribuições e assumir a defesa pública dos direitos de travestis e mulheres transsexuais, em sua maioria negras, que continuam marginalizadas, e tem os maiores índices de precariedade, violência, assassinatos (média de vida de 35 anos) e infecção pelo HIV.
Aqui se insere um espectro muito maior que a arquitetura corporal demarcada pela vagina, o espectro da feminilidade. Cabe ressaltar que o transfeminismo não despreza a vagina em seu discurso e muito menos a categoria ‘mulher’. Letícia explica que a vagina faz parte da anatomia de um conjunto de dispositivos que produzem as vulnerabilidades que esses corpos enfrentam. Antes de usar a categoria ‘mulher’ em análises, precisamos levar em consideração o contexto em que se insere esta mulher, o marcador étnico-racial, a classe e as questões das corpas transsexuais e travestis.
Não há como falar de gênero no Brasil sem falar de decolonialidade. Existe um didatismo que precisamos desfazer: a confusão entre sexo e gênero, instituída na afirmação de que sexo é biológico e gênero é cultural. Segundo Letícia Nascimento, o que produz o sexo é o gênero ou, dito de outro modo, apesar de sempre se demarcar primeiro a colocação do sexo em discurso, o sexo não é anterior a qualquer prática discursiva e, desta maneira, o sexo também é uma forma de demarcação discursiva cultural e social. Para ela, devemos subverter o uso da língua, utilizando termos como corpas e sujeitas, afinal, a língua também é um dispositivo de colonização, e a língua portuguesa é machista. Ainda dentro da categorização de gênero, ela sugere que o termo ‘travesti’ também é uma categoria, podendo ser utilizado da mesma forma que os termos ‘homem’ e ‘mulher’, afinal existem outras opções de expressar o gênero.
Quando falamos de sexo e gênero precisamos entender que o sexo acabou sendo ancorado dentro de uma biologia, o fazendo parecer inquestionável (uma ficção), mas precisamos contestar este paradigma, houve uma produção deste sexo. Alguns textos do feminismo, como da autora Linda Nicholson, professora emérita do departamento de história e estudos sobre mulher, gênero e sexualidade da Universidade de Washington, determinam isso como fundacionalismo de gênero. A autora faz uma analogia entre cabides e roupas: o sexo é como se fosse um cabide e o gênero uma roupa, existe várias roupas para se colocar nesse cabide, mas o cabide (que é o sexo) não muda. Ancorar as identidades em um único cabide, para Linda Nicholson limita o pensamento feminista.
O texto da María Lugones socióloga, professora, feminista e ativista argentina que trata de colonialidade e gênero também questiona esse didatismo. Atrelar o “ser mulher” a uma vagina é extremamente colonial pois, quem iniciou esse processo de definição de mulher nestes termos foi a ciência europeia. Quando falamos de decolonização, não podemos permitir que no movimento decolonial feminista aborde-se categorias essenciais dentro do sexo, correndo o risco de continuarmos operando como instrumento colonial de divisão dos corpos.
O pensamento de que pessoas cisgêneros têm um gênero verdadeiro e pessoas trans possuem um gênero falso decorre dessa produção discursiva colonial. Os estudos e pesquisas transfeministas entendem ambos os gêneros como falsos, ratificando-se na ideia de que todos nós dispomos de uma série de artefatos culturais para construir o nosso gênero. Perceber tudo isso contribui para entendermos que existem múltiplas possibilidades de se construir os corpos. Letícia Nascimento costuma explicar que existe um nível básico de discussão sobre gênero onde se usa aquela ideia didática de que o sexo é biológico e o gênero é cultural. Mas ela ressalta que caso haja o desejo de ser uma pesquisadora de gênero não se pode operar a partir destes conceitos. Apesar de já haver pesquisas sólidas que estabelecem o sexo como uma produção cultural, esse tema ainda encontra barreiras dentro da universidade. Por isso o transfeminismo traz a necessidade urgente de sempre demarcarmos a cisgeneridade em nossos estudos e pesquisas.
Essas barreiras se apoiam na pretensa afirmação de que somente as ciências biológicas são verdadeiras por trabalharem com o palpável; já as ciências humanas operam sempre criando ficções. Quando na verdade, a própria ideia de ciências biológicas é uma ficção, uma discursividade criada, não existe nada biologicamente natural. De acordo com Letícia Nascimento isso não significa dizer que a chuva não é chuva, que o sapo não é sapo, a pedra não é pedra, mas que tudo isso só é visto porque nós produzimos a linguagem, não existe nada sem a produção linguística, sem essa produção discursiva.
O que nos diferencia dos outros animais não é só a capacidade de pensar, é a capacidade de produzir sentido para as coisas. Letícia Nascimento enquanto pedagoga exemplifica isso usando o desenvolvimento das crianças: percebemos elas darem um salto em seus desenvolvimentos quando aprendem a linguagem. Através da linguagem elas acessam áreas do cérebro completamente diferentes. Há uma produção discursiva que está dentro de um jogo linguístico e é ensinado, que por sua vez está dentro de uma relação de poder, ou seja, essas relações de poder estão dentro de uma discursividade que produzem quem nós somos enquanto pessoas (mulheres, homens, sujeitos, negros e brancos, pobres e ricos) tudo devidamente dentro de padrões estabelecidos por uma construção discursiva colonial.
Quando se fala de discurso e ficção parece que eles não produzem materialidade, e obviamente produzem sim, e quase sempre são materialidades cruéis. Esse descolamento entre discurso e materialidade fomenta construções discursivas preconceituosas, machistas e lgbtfóbicas. Um exemplo disso, está em dizer que pessoas trans não são mulheres e nem homens. O trans é um fantasma da nossa humanidade, sendo este um outro tão distante de qualquer padrão conhecido que não pode ser considerado humano de modo nenhum. Esse discurso esvaziado gira no entorno da ideia de um gênero artificial. Disso surgem perguntas estapafúrdias: como você se tornou travesti? Como virou uma mulher? As mesmas perguntas podem ser feitas as mulheres cisgêneras, mas como você se tornou mulher? Ou você acha que já nasceu assim?
As travestis vieram para dar pleno sentido às palavras de Simone de Beauvoir, afirma Letícia Nascimento, não se nasce mulher se torna. Todas produzem em si uma forma de mulheridade a partir de suas anatomias, suas expressões e sua cultura. Dificilmente entenderemos o feminismo sem agenciar o gênero, a mulheridade e a feminilidade, sem estes a discursividade limita e exclui parte importante das pessoas, e produz generalizações perigosas do tipo: todas são mulheres, por isso não precisamos usar o termo mulher negra, mulher transsexual ou mulher indígena, por exemplo. Então é mais que uma demarcação, é uma categoria de análise que permite interpretar e entender as vivências da mulheridade e suas experiências.
Dentro desta discussão Letícia Nascimento cunha o conceito de outreridades. Simone de Beauvoir em seus textos afirma que o homem é um ser em si e a mulher seria um outro para este homem. Para as mulheres é vetada a possibilidade de se constituírem um ser em si, então na ausência de poderem se tornarem um ser, elas são um outro do homem. Quando este pensamento entra em contato com o feminismo negro, percebe-se que não são todas as mulheres um outro dos homens pois, no caso colocado por Simone de Beauvoir, ela fala do homem branco europeu, de tal modo, o outro dele é a mulher branca. As mulheres negras não possuem o mesmo status social que as mulheres brancas no mundo colonial. Assim sendo, as mulheres negras seriam o outro do outro ser. Quando realizamos uma leitura desta lógica através do transfeminismo, identificamos que as mulheres transsexuais e travestis são o outro do outro do outro ser, ou seja, uma marca tão borrada do que é ser mulher, onde não há espelhamento de humanidade. As outreridades marcam outras formas de se existir, outros lugares, outros atravessamentos, outras interseccionalidades. Existem vários processos de ser outro, de ser outra, não podemos determinar que somos apenas outro em relação a uma questão. Se olho para a minha experiência, sou a outra da branquitude, mas também a outra da cisgeneridade, afirma Letícia Nascimento.
Sojourner Truth foi uma abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres (vista hoje como uma feminista negra). Ela questionou o feminismo (por volta do século XIX) levantando a seguinte pergunta: E não sou uma mulher? Contestando haver somente mulheres brancas no movimento. Letícia Nascimento transfeminista, travesti, negra, gorda, nordestina e do candomblé questiona: E não posso eu ser uma mulher? O transfeminismo nos provoca a repensarmos a diversidade de experiências femininas e a redimensionar a categoria gênero, reivindicando outras formas de mulheridade e feminilidade, nos opondo as contradições de discursos que, sobre uma visão binária de gênero, ignoram o caráter social e político na formação da personalidade humana. Contribui, além disso, para um projeto de país sem discursos esvaziados, com respeito e mais inclusivo.
Referências
Livro Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade. 2018;
Livro Transfeminismo: Feminismos Plurais. 2021;
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