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Foto do escritorKátia Oliveira

Sexismo, racismo e o direito à cidade

Reflexões acerca da problemática urbana a partir de uma perspectiva de intelectuais feministas negras



Imagem: Colagem da autora, 2021


Ao entrar, inicialmente, em contato com textos de feministas, sobretudo que falam do planejamento urbano e direito à cidade, me deparei com a importante contribuição de feministas negras, intelectuais e militantes, que apresentam suas pesquisas e visões críticas da problemática urbana a partir de uma perspectiva que fala não somente de sexismo, mas o intersecciona principalmente com o racismo no Brasil. Me proponho a apresentar, nesse breve texto, algumas das reflexões dessas mulheres, por entender sua relevância na disputa do direito à cidade, de maneira a rompermos com os padrões coloniais vigentes, interseccionado discriminações, opressões e evidenciando privilégios na hora de desenvolvermos nossos estudos e atuarmos na proposição e na construção de políticas públicas e projetos urbanos em nossas cidades.


Segundo a antropóloga estadunidense, Kia Lilly Caldwell, que examina gênero e raça no Brasil, desde o período colonial, o status privilegiado do homem branco na sociedade brasileira tem sido fundamental para a construção da identidade feminina no País, mostrando que o marcador de raça, colocou mulheres brancas e negras em condições desiguais. Em seu artigo “Fronteiras da Diferença: raça e mulher no Brasil, a autora afirma: “Desde a era colonial, as mulheres foram diferenciadas por práticas patriarcais que associaram matrimônio a mulheres brancas e relações sexuais mais ilícitas a não brancas.” A identificação e o reconhecimento dos legados da escravidão no Brasil em termos de dominação racial, de gênero e das desigualdades, conduziram à compreensão de que as experiências sociais são diferentes para mulheres brasileiras negras e brancas. A relação entre ideologia patriarcal e racismo faz com que, por exemplo, questões comuns, relativas à sexualidade, saúde reprodutiva e trabalho remunerado, passem a ter significados diferentes para negras e brancas (CALDWELL, 2000).


Caldwell também ressalta que feministas negras, como a antropóloga Lélia Gonzalez e a socióloga Luíza Bairros, em seus estudos, demonstraram que a aparente liberação de feministas brancas tinha relações com a subordinação continuada de mulheres negras na execução de serviços domésticos de baixa remuneração nas casas das famílias brancas. O que permitiu que as mulheres brancas entrassem cada vez mais na força de trabalho. Ignorar a exploração sexual das mulheres negras, sobretudo daquelas que trabalham no serviço doméstico e que fazem parte da base da pirâmide socioeconômica, fez parte das críticas de Lélia Gonzalez dirigidas às feministas brancas brasileiras, desde o início dos anos oitenta. Lélia foi a precursora em acrescentar à condição da mulher brasileira o marcador de raça e em estabelecer a articulação entre racismo e sexismo (CALDWELL, 2000).


Para a antropóloga brasileira, as contribuições das feministas brancas foram fundamentais para a discussão da discriminação com base na orientação sexual, mas o mesmo não aconteceu diante de outro grave tipo de discriminação: a de natureza racial. Evidencia que para se estabelecerem como ideologias de dominação, tanto o sexismo quanto o racismo se baseiam em um mesmo argumento: as diferenças biológicas que inferiorizam uns em detrimento de outros. E que o esquecimento da discriminação racial do feminismo branco pode ser explicado a partir do que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes são encontradas em uma cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista da realidade (GONZALEZ, 1988).


No Brasil a organização espacial das cidades é fruto de práticas políticas coloniais que se materializam no território de forma a manter as condições de dominação da população não branca até os dias de hoje. Desde o início do período colonial (1530), houve uma separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e por dominados, onde o lugar natural do grupo branco dominante está constituído pela casa grande, pelo sobrado, pelos belos edifícios residenciais. Enquanto isso, o lugar do negro está, evidentemente, no lugar oposto, onde a divisão racial do espaço se evidencia na existência das senzalas, das favelas, dos cortiços, ocupações irregulares, alagados e conjuntos habitacionais periféricos (GONZALEZ,1979).


A arquiteta e urbanista Tainá de Paula, pesquisadora sobre os temas urbanos, eleita vereadora em 2020 pela cidade do Rio de Janeiro, com atuação em diversos projetos de urbanização e habitação popular, no artigo “Diáspora Urbana: as cidades reescritas”, evidencia que a exclusão dos negros da cidade, do ponto de vista legal no Brasil, teve como marco, a Lei de Terras de 1850, que proibia-os de terem acesso à terra, impedindo-os concretamente de se constituírem como parte do tecido urbano formal e do exercício construtivo da época. A autora também fala de uma “segunda diáspora”, ocorrida pelo processo de apagamento forçado das matrizes histórico-culturais africanas nas cidades brasileiras, tanto do ponto de vista concreto, como simbólico e epistemológico, obrigando a população afrodescendente, maioria no País, a construir a sua própria cidade. (PAULA, 2019)

Gabriela de Matos (2020), arquiteta e urbanista, coordenadora do projeto Arquitetas Negras e vice presidente do IAB SP, que pesquisa o racismo estrutural e suas implicações no planejamento urbano, em entrevista à revista eletrônica Casa Vogue, de 7 de março de 2020, na semana da mulher, falou sobre o acesso à cidade e trouxe reflexões de como a arquitetura e o planejamento urbano se relacionam aos problemas cotidianos enfrentados pelas mulheres brasileiras. Para Gabriela “Vários fatores contribuem para que uma cidade não seja segura, e estes fatores podem ser potencializados levando em consideração o perfil da mulher, por exemplo: idade, raça, orientação sexual.” Ressalta também, que as mulheres negras, por estarem historicamente e em maioria em situação de vulnerabilidade, são as que mais sofrem com os deslocamentos, com a falta de mobilidade e com o acesso à cidade. E que acessar à cidade envolve uma série de serviços públicos como moradia digna, saneamento básico, transporte público eficiente, creches e oportunidades de trabalho (MATOS, 2020).


Para além do racismo praticado por pessoas brancas, que impacta negativamente as possibilidades de as mulheres negras terem acesso a serviços públicos de qualidade e ao mundo do trabalho, o machismo também as atinge de forma diferenciada no uso do espaço público. Em 2018, a arquiteta e urbanista Bárbara Oliveira, em sua participação no evento Casa Vogue Experience – Ao responder a pergunta "As cidades brasileiras são feitas para negros?", revelou que não consegue caminhar nas ruas e se sentir bem e segura em seu próprio País. A mulher negra no Brasil além do racismo, sofre também com a hiper sexualização de seu corpo, o que a transforma na “carne mais barata do mercado” como diz a poesia de Elza Soares na canção “A carne”(OLIVEIRA, 2018).


Mais recentemente, no texto “O que as mulheres têm a ver com o Plano Diretor?” publicado no Portal Geledés, Tainá de Paula aponta que no Brasil, os tomadores de decisão são em sua maioria reprodutores do privatismo oligárquico e do capital produtivo mais tradicional (construção civil, logística, hotelaria, indústria naval, etc ). E que, portanto, as mulheres e também os jovens, as pessoas negras, as populações vulneráveis (em situação de rua, adictos, ciganos, etc) e os idosos são majoritariamente excluídos dos processos de decisão urbana, numa reprodução do chamado “establishment urbano”. Para ela, a inserção de mulheres no debate sobre os Planos Diretores reforça elementos estratégicos para a implementação de políticas urbanas de reparação e equidade de gênero e o movimento de mulheres precisa absorver a discussão urbana como estratégica para que essas mudanças estruturais aconteçam (PAULA, 2021).


A autora também evidencia que iniciativas que promovem trajetos urbanos diferenciados adequados à vida cotidiana das mulheres, iluminação pública e acesso à água aumentam em quase 90% quando estas participam de Conselhos de representação urbana e da elaboração de Planos Diretores. Cita o caso de Barcelona, com suas representações de mulheres por bairro e de Quito, com os conselhos de populares de mulheres como importantes exemplos de inovação para a equidade de gênero. E também chama a atenção para a existência de coletivos de urbanistas feministas pelo mundo que, dentre muitas novas iniciativas, calculam os impostos de enfrentamento à misoginia, o “misogyny tax”, para que a construção de fundos de equidade aconteça; que propõem que os hospitais cesaristas paguem uma taxa extra para funcionar; que prédios com aluguéis abusivos perto de escolas e creches paguem mais impostos e que prefeituras que não apresentem planos de enfrentamento à violência de gênero, sejam multadas (PAULA, 2021).


Desde a década de 80, muitas são as reflexões e informações relevantes produzidas por intelectuais feministas negras para que enriqueçamos nossos estudos e participação como feministas brancas e não brancas nos diferentes espaços que ocupamos. Precisamos dar visibilidade às diferentes discriminações e opressões sofridas pelas mulheres, nomear e responsabilizar privilégios e estabelecer reparações históricas. Mesmo conscientes de todas as dificuldades impostas por esse sistema social que privilegia pessoas brancas, herdeiras de um poder oligárquico e privatista, é imperativo lutarmos pela construção de uma outra lógica para os processos de planejamento urbano e produção de cidades mais inclusivas. Necessitamos unir esforços dos muitos feminismos, a fim de romper com a cosmovisão eurocêntrica e neocolonialista que impera em nossa sociedade.


Referências:


CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e mulher no Brasil. Revista Eletrônica Estudos Feministas. Vol. 8, n. 2. Universidade Federal de Santa Catarina, 2000. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/11922 Acesso em: 15 mar 2020


GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 2020 p 139-150


MATOS, Gabriela de. As cidades são pensadas para as mulheres? Urbanistas sugerem soluções de inclusão. Casa Vogue Eletrônica. Cidade. Disponível em: https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/notícia/2020/03/cidades-sao- pensadas-para-mulheres-urbanistas-sugerem-solucoes-de-inclusao.html Acesso em: 25 mar 2020


OLIVEIRA, Bárbara. As casas e cidades brasileiras são feitas para negros? Casa Vogue Experience 2018. Casa Vogue Eletrônica. Disponível em: https://casavogue.globo.com/Casa-Vogue-Experience/noticia/2018/10/casas-e-cidades-brasileiras-sao-feitas-para-negros.html Acesso em: 10 dez 2020


PAULA, Tainá de. O que as mulheres têm a ver com o Plano Diretor? Portal Geledés. Questões de gênero. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-que-as-mulheres-tem-a-ver-com-o-plano-diretor/?utm_source=pushnews&utm_medium=pushnotification Acesso em: 01 mar 2021


PAULA, Tainá de. Diáspora Urbana: as cidades reescritas. Arquitetas Negras. 1ª edição. São Paulo: Bendito Ofício, 2019. p.24-34


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