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Resenha do relatório de Diana Helene e Rossana Brandão Tavares:


“Meu corpo, meu território: mulheres e o direito à cidade a partir das relações interseccionais no espaço urbano”

Imagem: Rosane Lima, 2017



Uma coisa é constatar a presença das mulheres na cidade, outra completamente distinta é pensar a produção desse espaço tendo como preocupação política e analítica a estrutura e a dinâmica das relações das desigualdades entre mulheres e homens. Falar das desigualdades não é apenas tratar do problema do ponto de vista do acesso desigual aos espaços e processos das cidades, é, acima de tudo, reconhecer que as desigualdades entre mulheres e homens não atravessam a produção e reprodução das cidades, mas são, por princípio, elementos constituintes das mesmas. (Gouveia, 2005, p.1)




Essa introdução complementa a discussão da sessão livre nº 48 organizada e publicada nos anais do XVIII Encontro Nacional da ANPUR, o ENANPUR 2019. Nele as organizadoras Diana Helene e Rossana Brandão Tavares subscrevem o relatório "Meu corpo, meu território: mulheres e o direito à cidade a partir das relações interseccionais no espaço urbano", apresentando um resumo dos trabalhos de diferentes autores que participaram da sessão, com o objetivo de propor um debate sobre as contradições sociais da produção capitalista do espaço urbano no Brasil no que tange a falta de inclusão da perspectiva de gênero no planejamento urbano e regional, de forma articulada com a teoria feminista interseccional.


Inicialmente as pesquisadoras propõem uma análise do tema construindo uma reflexão a partir das interseccionalidades ou sopreposição de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação e discriminação como fatores que contribuem para os conflitos urbanos, tensionados pelas desigualdades. Para tal é resgatado o conceito do feminismo interseccional como uma importante teoria na compreensão de como essas opressões de gênero, classe e raça, se relacionam entre si e afetam na vida de cada mulher, que acaba assim por experimentar a opressão a partir de um ponto de vista único, interferindo em suas experiências devido às desigualdades instauradas pelo patriarcalismo. As autoras alertam que para essa experimentação no caso das cidades, é evidente como formas simultâneas de opressão são responsáveis por uma somatória de desigualdades urbanas, no entanto, para essas diferentes opressões que se cruzam e se inter-relacionam estruturando nossas cidades, é preciso olhar para além das desigualdades entre homens e mulheres instauradas pelo sistema patriarcal.


Silvia Federici (2017) relembra que historicamente a famosa “Caça às bruxas” e as “acusações de adoração ao demônio” que ocorriam na Europa durante a acumulação primitiva capitalista foram levadas às colônias com o intuito de romper a resistência das populações locais, justificando assim a colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo. O trabalho escravo realizado nas colônias instituiu para além da divisão das atividades no âmbito doméstico, as relações sociais de sexo como implícitas aos salários, provocando uma consequente naturalização de sua exploração.


Entende-se que “todas as formas de ocupação e manifestações culturais de origem não-branca, não-masculina, não-heterosexual e não-europeia nas cidades é parte de um projeto de dominação cultural e apagamento” (TAVARES, R.B. & HELENE, D. 2019).

Ademais, essa urbanização privilegiada que divide as tarefas cotidianas entre produtivas (mercadorias, bens e consumo) e reprodutivas (provisão de habitação, alimentação, cuidados e limpeza), contribui para a reprodução de relações que expressam as desigualdades estruturantes do sistema, determinando no território, como as mulheres usufruem das áreas de centralidade, espaços de moradia, infraestrutura urbana e equipamentos públicos. Serão essas desigualdade e diferentes formas de opressão que determinarão o espaço urbano e nele se manifestarão.


Portanto, essas formas de estruturação se manifestam de maneiras distintas na espacialização das desigualdades sociais do território urbano e condicionam formas diversas entre as diferentes classes, raça e gênero de se vivenciar as cidades, onde “destituídos do próprio direito à cidade, as mulheres são duplamente afetadas pela problemática da informalidade urbana” (ITIKAWA, 2015).


Como consequência, o espaço público parece não pertencer ao público feminino, sendo-lhes exigidas uma série de condutas socialmente definidas: como devem se portar, o que devem vestir, em que horários devem circular e com quem devem estar. E, assim, a moralidade acompanha a liberdade feminina no espaço público: seu corpo é dominado e seu direito à cidade e à livre circulação é restringido, controlado por argumentos estereotipados que reduzem a mulher à sua condição socialmente imposta de sujeita privada (LYRA, JULIA, 2020).


Reconhecendo que a discussão da posição social da mulher no contexto urbano é uma pauta urgente o relatório contribui com uma série de debates importantes para a desconstrução de um pensamento antifeminista e resgata uma temática alimentada por diferentes propostas de discussão sobre o tema no qual se pressupõe que “a cidade não é cenário, mas sim, um palco neutro das relações sociais” (VIANNA, 2014, p.8), e consiste, majoritariamente, em um espaço de dominação masculina.


Tal construção se dá inicialmente pelo estudo da autora, Paula Santoro, que propõe refletir sobre as dinâmicas urbanas brasileiras das últimas duas décadas que sugerem uma revisão da agenda de pesquisas sobre cidade com vistas a discutir o modelo dualista e hegemônico por meio das pautas feministas na luta anticapitalista contra à expansão das fronteiras do capital sobre seus territórios de reprodução da vida. Não obstante, Gabriela Pereira insere a questão do corpo negro nessa conjuntura, marcada por uma lógica violenta, genocida e etnocida de silenciamento, apagamento e extermínio físico e simbólico. Para a autora, nas cidades, a principal urgência para as mulheres negras é retardar a morte: suas, dos seus filhos e de seus companheiros. E Marina Harkot, discute em seu texto de que maneira o medo é determinante na definição da experiência urbana das mulheres, por meio de uma análise dos espaços de circulação e mobilidade na cidade de São Paulo.


Embora as discussões tenham se dado sob a visão de que as cidades não são pensadas para e por mulheres, as autoras concluem que a conquista pela liberdade e igualdade nunca se dará unicamente pelo âmbito espacial, posto que a verdadeira mudança deverá ser social, ideológica e estrutural exigida de mulheres para mulheres. Enquanto isso, “é necessário defender pautas e demandas femininas, tornando visíveis não apenas os desejos de uma maior segurança, mas de acesso livre ao lazer, aos espaços públicos, à circulação e à permanência em todos os espaços da cidade” (LYRA, JULIA, 2020), provando que não se trata de reforçar ou naturalizar papéis socialmente construídos, mas de reconhecê-los para reivindicar a realidade posta e, somente assim, garantir a autonomia das mulheres na ocupação e permanência nos espaços, respeitando seus desejos e necessidades pessoais.


Referências:


DE FIGUEIREDO, P. S., & Martins, V. S. O Feminismo Interseccional na articulação do saber acadêmico e da ação política: reflexões a partir da experiência de um coletivo feminista. Revista do programa de pós-graduação em relações étnicas e contemporaneidade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Bahia, volume 5, número 10, p. 334-344, Julho-Dezembro de 2020.


FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.


GOUVEIA, T. Mulheres : Sujeitos ocultos das/nas cidades. Revista do programa de capacitação em políticas de desenvolvimento urbano sustentável e gestão democrática (PROGED), Belém, volume 1, número 5, p.56-61, 2005. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/235282224/80-Genero-e-Reforma-Urbana-g-Mulheres-Sujeitos-Ocultos-Dasnas-Cidades. Acesso em: 14 de março de 2021.


ITIKAWA, L.F. Mulheres na periferia do urbanismo: informalidade subordinada, autonomia desarticulada e resistência em Mumbai, São Paulo e Durban. Revista brasileiras de estudos urbanos e regionais da Universidade de São Paulo, São Paulo, volume 18, número 01, p. 57-76, Janeiro-Abril de 2016.


LYRA, J. de F. C. Sujeitas públicas, narrativas anônimas: Espacializando o medo e a (im)permanência da mulher no âmbito urbano em Maceió/AL – Brasil. In: Fórum sociológico (online), p. 9-23. Disponível em:http://journals.openedition.org/sociologico/8991. Acesso em: 14 de março de 2021.


TAVARES, R.B. & HELENE, D. Meu corpo, meu território: mulheres e direito à cidade a partir das relações interseccionais no espaço. In: XVIII ENANPUR, 2019, Natal, RN. Disponível em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anaisadmin/capapdf-sl.php?reqid=77. Acesso em: 14 de março de 2021.


VIANNA, F. Mulheres na cidade: A invisibilidade e a exploração da condição da mulher no espaço urbano. Trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, São Paulo.


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