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Foto do escritorKátia Oliveira

Resenha do artigo “Colonialidade e gênero” de Maria Lugones


Ilustração de uma mulher negra e uma mulher indígena com a natureza ao entorno.

Fonte: I / Alma Preta – Portal Terra


O artigo “Colonialidade e gênero” de Maria Lugones foi publicado inicialmente em abril de 2008 na Revista Worlds and Knowledge Otherwise e, a partir de 2020, traduzido do espanhol para o português por Pê Moreira, passou a fazer parte de um conjunto de trabalhos contidos no livro “Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais”, publicado pela editora Bazar do Tempo e organizado e apresentado pela pesquisadora e professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Heloísa Buarque de Hollanda. Logo na introdução, Hollanda problematiza a aceitação fácil e acrítica do pensamento feminista branco norte-americano e europeu por parte das feministas latino-americanas e brasileiras ocorrida, principalmente, entre as décadas de 1960 e 1990. De outra parte, destaca a relevância dos estudos que compõem a publicação, apontando que o feminismo decolonial privilegia a contestação à colonialidade desses saberes e busca construir a consciência da violência e da opressão dos processos colonizadores, propondo uma radical revisão epistemológica das teorias feministas euro centradas, incluindo o fim da divisão entre teoria e ativismo, que caracterizou os nossos feminismos desde sempre (HOLLANDA, 2020).


Maria Lugones foi uma filósofa, professora, pesquisadora e ativista feminista lésbica, nascida em 1944, em Buenos Aires, na Argentina. Faleceu em 2020 nos Estados Unidos, para onde mudou-se ainda nos anos 1960, realizando a graduação em filosofia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles e o mestrado e doutorado na mesma área, na Universidade de Wisconsin. Em 1993, tornou-se professora no Departamento de Literatura Comparada e no Programa de Estudos sobre Mulheres, Gênero e Sexualidade da Universidade de Binghamton, em Nova York (ANTUNES, 2020). Em seus estudos analisou as diversas formas de resistência diante das múltiplas opressões de gênero, desenvolvendo o conceito de “colonialidade de gênero”. Nesse sentido, dentre seus vários ensaios dedicados ao tema, além do ensaio aqui apresentado, uma de suas contribuições mais importantes aparece no texto “Multiculturalismo radical y feminismo de las mujeres de color” de 2005. Nele a filósofa propõe uma mudança decisiva de uma lógica da opressão para uma lógica da resistência (BIDASECA, 2021).


A partir da condição de mulher latino-americana lésbica vivendo nos Estados Unidos e partindo de pressupostos teóricos de feministas não brancas, insere-se na discussão que faz frente ao pensamento feminista hegemônico eurocêntrico, cujas análises e reflexões não consideram as condições das milhões de mulheres não brancas e também daquelas não identificadas com a heteronormatividade ao redor do mundo. Colaborou como teórica da coalizão construída entre mulheres vítimas da colonialidade chamada de “Mulheres de Cor”, sendo fiel à linha de pensamento de Gloria Anzaldúa, Audre Lorde, Chela Sandoval e Patricia Hill Collins (BIDASECA, 2021). Foi reconhecida por suas contribuições inovadoras na teoria e filosofia decolonial feminista, filosofia e teoria indígena, estudos críticos de gênero, raça e sexualidade, filosofia latino-americana e teoria de sistemas mundiais divulgadas através de artigos, simpósios, capítulos de dissertação e edições de periódicos. Em 2016, foi nomeada “Distinguished Woman Philosopher” pela Society for Women in Philosophy (ANTUNES, 2020).


Para a filósofa, o sistema de gênero surge quando o discurso moderno colonizador estabelece a dicotomia fundadora colonial: a classificação entre o “humano” e o ‘não humano’. Como humanos aponta os colonizadores e como não humanos, os nativos indígenas e os africanos escravizados chegados mais tarde, vistos como animais e primitivos. Evidencia que a ausência da atribuição de gênero na categoria “não humano”, não chamou a atenção dos autores decoloniais. E será esse o passo à frente no pensamento decolonial que dará origem ao “feminismo decolonial”: o gênero como parte que estrutura a colonialidade, como categoria que surge no vocabulário colonial e que, até então, não fazia propriamente parte das dinâmicas das sociedades pré-coloniais (LUGONES, [2008] 2020).


Logo na introdução do artigo “Colonialidade e gênero” esclarece que suas reflexões apresentam uma abordagem crítica envolvendo as questões de raça, gênero, classe e sexualidade e que denunciam a responsabilidade e a indiferença dos homens frente às mais diversas violências que recaem, sobretudo, sobre as mulheres não brancas. Destaca que essa indiferença é proveniente de homens que foram e continuam sendo também vítimas da dominação racial, da colonialidade do poder e inferiorizados pelo capitalismo global. E conduz sua investigação teórica a partir da problematização dessa indiferença e da constatação das violências que o Estado, o patriarcado branco e esses próprios homens inferiorizados, perpetuaram e ainda perpetuam contra as mulheres não brancas das comunidades dos países colonizados em todo o mundo (LUGONES, [2008] 2020).


O artigo está dividido em seis seções: A colonialidade do poder; Intersexualidade; Igualitarismo ginocêntrico ou não atribuído de gênero; Igualitarismo sem gênero; Igualitarismo ginocêntrico; e O sistema moderno/colonial de gênero. Através das quais Lugones estrutura suas reflexões sobre dois marcos de análise que entende não terem sido suficientemente explorados de maneira conjunta. Por um lado, o trabalho sobre gênero, raça e colonização produzido pelas mulheres de cor feministas dos Estados Unidos, pelas feministas do Terceiro Mundo, e feministas das escolas de jurisprudência Lat Crit e Critical Race Theory, cujos marcos analíticos se estruturam no conceito de interseccionalidade e apontam a exclusão histórica e teórico-prática das mulheres não brancas nas lutas libertárias empreendidas em nome da mulher. De outro, o conceito de “colonialidade do poder” de Aníbal Quijano, central aos estudos sobre colonialidade do saber, colonialidade do ser e decolonialidade (LUGONES, [2008] 2020).


A autora esclarece que Quijano irá oferecer uma teoria histórica da classificação social para substituir o que ele chamou de “teorias eurocêntricas sobre as classes sociais”. Seu conceito de “colonialidade do poder” refere-se à classificação universal e básica da população de todo o mundo a partir da ideia de ‘raça’. Desde a criação dessa ficção biológica, ocorreu uma guinada profunda que serviu e ainda serve para organizar e estabelecer as relações de dominação, definindo quem será superior e inferior, e permitindo entender a centralidade da classificação da população em raças no capitalismo global. Porém, observa que somente a raça não determina a configuração da colonialidade do poder pensada por Quijano. E que essa deve estar acompanhada pelo gênero e pela heterossexualidade. Também aponta que o gênero ao qual o sociólogo peruano se refere, está ligado a um tipo de relação humana reservada ao homem branco europeu possuidor de direitos e sua companheira mulher que serve à reprodução da espécie (LUGONES, [2008] 2020).


Lugones ([2008] 2020) destaca que desde a expansão do colonialismo europeu imposto à população em diferentes partes do mundo, a classificação de raça tem atravessado todas as áreas da vida social das populações racializadas, tornando-se a forma mais efetiva para sua dominação, tanto material como intersubjetiva. A “colonialidade” não se refere apenas à classificação racial, mas a um dos eixos do sistema de poder que atravessa o controle de acesso ao sexo, à autoridade coletiva, ao trabalho, à subjetividade/intersubjetividade e também à produção do conhecimento.


No ensaio a filósofa expande e complexifica a ideia de colonialidade do poder, aprofundando o conceito de gênero, propondo que no seu significado estão inscritos de maneira central e dominante o dimorfismo biológico, relativo à dicotomia homem/mulher; a heterossexualidade; e o patriarcado. Em sua crítica à teoria de Quijano, também apontou que o sociólogo não percebeu que esses três traços específicos compunham de maneira importante o significado hegemônico de gênero. Ao incluí-los, define o que chamou de “sistema de gênero moderno/colonial”, destacando que é fundamental perceber que, a partir dele, a organização de gênero acontece de maneira diferenciada quando se acrescenta a questão racial (LUGONES, [2008] 2020).


É apresentado um conjunto de argumentações ao longo do texto que evidenciam que somente a partir da percepção que gênero e raça estão indissoluvelmente fundidos é que será possível realmente ver a realidade das mulheres de cor, referindo-se a todas aquelas racializadas seja por sua cor de pele ou etnia, seja por seu país de origem. Significa dizer que a categoria “mulher”, por si só, sem a especificação dessa fusão, ou não tem sentido ou é racista, uma vez que a lógica histórica de utilização da categoria abarca apenas as mulheres burguesas europeias ou norte-americanas, identificadas como brancas e heterossexuais. Escondendo a brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero produziu e, consequentemente, criando barreiras intransponíveis para as lutas pela libertação das comunidades dos países colonizados (LUGONES, [2008] 2020).


Para finalizar enfatiza que a organização social apresentada por ela de maneira aberta, é o início de um diálogo e um projeto de pesquisa e educação popular coletivo e participativo para que, a partir de então, seja possível visibilizar em todos os detalhes os processos do sistema de gênero colonial/moderno enredados à colonialidade do poder até os dias de hoje. E que parte do trabalho está feita, mas que há ainda que apresentar melhor os lados visível/iluminado e oculto/obscuro desse sistema. Conclama a todas aquelas pessoas que se debruçam sobre a temática a buscar entender a organização do aspecto social para colaborar com a visibilização de uma violência de gênero sistematicamente racializada, a fim de que se produza um inescapável reconhecimento dessa colaboração em nossos mapas da realidade (LUGONES, [2008] 2020).


María Lugones nos deixou um importante legado teórico-prático que, como pesquisador@s do tema, nos cabe continuá-lo. Suas palavras nos convocam à ação de resistência: “Precisamos nos colocar em uma posição que nos permita rechaçar esse sistema, enquanto promovemos uma transformação das relações comunais” (LUGONES, [2008] 2020). Diante de um contexto de urgente enfrentamento à ascensão de uma direita patriarcal, misógina, conservadora e violenta que tem nas mulheres, sobretudo racializadas, empobrecidas e que fogem a heteronormatividade, suas principais vítimas, o pensamento feminista decolonial, desenvolvido por ela, ilumina a discussão do feminismo latino-americano e destaca a importância de que se faça atenção a conceituação do "ser mulher", interseccionando relações de raça, classe, sexualidade, gênero, geopolítica, dentre outras. E propõe que repensemos nossas práticas políticas e teóricas, valorizando e visibilizando as experiências e as identidades daquelas cujas vidas e histórias foram ocultadas pelo pensamento feminista eurocêntrico e que protagonizam, desde muito, importantes processos de resistência.


Referências

ANTUNES, Leda. Referência do pensamento feminista decolonial, ativista e filósofa argentina María Lugones morre aos 76 anos. Rio de Janeiro: O Globo, 2020 Disponível em: https://www.geledes.org.br/referencia-do-pensamento-feminista-decolonial-ativista-e-filosofa-argentina-maria-lugones-morre-aos-76-anos/ Acesso em: 11 de jan. 2023

BIDASECA, Karina. María Lugones (1944 – 2020). Blog Mulheres na Filosofia. Campinas, 15 de setembro de 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/mulheresnafilosofia/maria-lugones/ Acesso em: 11 jan. 2023

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Introdução. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1ª edição. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

LUGONES, María. Colonialidade e gênero. Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. 1ª edição. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, [2008] 2020


Imagem de capa

Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/outros-nomes-para-o-bem-viver-a-acao-das-mulheres-na-america-latina,ba5f9a9085be254cabf72577884cd56b3op6qnl6.html


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