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Foto do escritorPhamela Alves

Práticas urbanísticas feministas: da habitação à cidade

Atualizado: 27 de abr. de 2023

Entre os dias 18 e 20 de agosto de 2022, aconteceu na cidade de Salvador o 3° Seminário Mulher, Cidade e Arquitetura. O evento foi organizado em conjunto pelo Grupo de Pesquisa LAB20 (Laboratório da Arquitetura e do Urbanismo do século XX da UFBA) e Amar.é.linha (Observatório de estudos feministas em Arquitetura e Urbanismo da UnB). Tivemos a oportunidade de participar com o artigo “Práticas urbanísticas feministas: da habitação à cidade”.  

No artigo, buscamos contribuir para a visibilidade de práticas urbanísticas feministas em diversas escalas: habitação, vizinhança, bairro e cidade. Para tal, partimos do entendimento de que o campo da arquitetura e do urbanismo é tradicionalmente reconhecido pelo domínio masculino. Embora durante o ano 80 a pauta de gênero tenha florescido em várias áreas do conhecimento e de atuação, o mesmo não ocorreu na produção teórica das disciplinas urbanas. A produção feminina, historicamente, foi desacreditada ou não valorizada devidamente.


Dentre as práticas, como exemplo na escala do edifício temos em Viena, o Frauen-Werk-Stadt I, II e III (mulher - trabalho - cidade, ou: mulheres na cidade do trabalho), projetos habitacionais que atendem aos requisitos das necessidades cotidianas. O Frauen-Werk-Stadt I (1993-1997) planejado inteiramente por mulheres foi caracterizado pela perspectiva da mulher em todos os níves, desde o armazenamento de carrinhos de bebês nos andares à amplas escadas, para que aconteçam interações entre a vizinhança. É um edifício que foi pensado também na segurança de seus moradores, para “ver e ser visto”. São 357 unidades com o objetivo principal de apoiar as tarefas de cuidado, domésticas e familiares. Esse edifício tem os seus apartamentos projetados com layouts flexíveis, adaptáveis às diferentes necessidades de diferentes fases da vida. O Frauen-Werk-Stadt II é uma habitação orientada para a comunidade de idosos. O Frauen-Werk-Stadt III foi desenvolvido de forma participativa junto aos futuros moradores (URBAN DEVELOPMENT VIENNA, 2013). São exemplos de projetos feministas em prol não apenas de habitações mais adequadas às suas necessidades, mas da vida comunitária, aplicando tanto experiências pessoais femininas no desenvolvimento dos projetos quanto posições como cidadãs.


Na escala de bairro destacamos o exemplo nordico relatado em ‘Experiences of the EUROFEM: Gender and Human Settlements Network' (HORELLI, 2000). A rede EUROFEM desenvolveu, na década de 80, um modelo para criação de infraestrutura de apoio à vida cotidiana nos bairros, que integrava serviços, trabalhos e cuidados, respeitando o meio ambiente. São estruturas físicas, funcionais e econômicas que aumentam o senso de comunidade e identidade do lugar pelo suporte que elas oferecem e maneira de lidar com questões como o equilíbrio entre trabalho e cuidado (associado às mulheres), interação entre as esferas público-privadas, mobilidade acessível, e moradias de diferentes tipologias, como coabitação.


Como prática urbanística feminista na escala da cidade temos como exemplo novamente Viena, que vem integrando o gênero no planejamento urbano desde o ano de 1991, destacando-se no que diz respeito à profundidade conceitual e amplitude temática. A cidade inclui a perspectiva de gênero no planejamento urbano em diferentes fases da vida para que seja possível dar visibilidade às diferentes realidades cotidianas das pessoas. Como referência nesse âmbito citamos Eva Kail, que popularizou a integração de gênero no design da cidade e já contribuiu com mais de 60 projetos relacionados à igualdade de gênero.


Destacamos também a contribuição de Jane Jacobs (2011), importante ativista acerca de assuntos relacionados à cidade e uma das principais críticas ao urbanismo moderno. Não há registros de que a autora se identificasse com o feminismo, mas as estratégias defendidas por ela sustentam uma ideia de cidade igualitária, com pessoas nas ruas - o que pode ser relacionado diretamente a uma cidade inclusiva a questão de gênero. Durante as décadas de 1950 e 1960, ela iniciou um importante trabalho a favor das comunidades de bairros e contra uma concepção de cidade pautada na setorização e priorizando grandes obras viárias, por exemplo, que acabam prejudicando o convívio em comunidade. Suas reflexões são fundamentais até os dias atuais, sendo ‘Morte e Vida das Grandes Cidades’ uma referência para a luta por espaços de socialização e sociabilidade das cidades (JACOBS, 2011).


Movimentos defendendo a incorporação da vida quotidiana no planejamento urbano adquiriram grande relevância e visibilidade especialmente na Cataluña, fazendo com que diversos projetos ganhassem força, como Mujeres y Ciudad, destacando recomendações para intervenções urbanas sob a perspectiva de gênero. Podemos destacar a Lei de Bairros, outra iniciativa que introduziu o gênero como um parâmetro do planejamento urbano e, a partir dela, destacamos também complementações e leis voltadas à inclusão da mulher na escala do bairro. Também pela Ley Catalana de Igualdad foram estabelecidas que todas as políticas de planejamento urbano, moradia, mobilidade e sustentabilidade, incluam a perspectiva de gênero em suas ações. Para isso, foi garantido o acesso à informação de gênero político, coleta e análise de dados por sexo, elaboração de estudos de impactos e medidas corretivas, aplicação de políticas de planejamento urbano visando criar cidades compactas com mesclas de usos e políticas de mobilidade que priorizam as atividades da vida quotidiana, especialmente relacionadas ao trabalho e cuidado (MUXÍ, 2020).


Outro exemplo apresentado foi o Manual de Desenho de Espaços Públicos com Perspectiva de Gênero e Diversidade (CARLUCCI, 2022), desenvolvido a partir de um trabalho colaborativo entre diferentes áreas do Governo da Cidade de Buenos Aires que tem como objetivo servir de referência teórico-prática para governos locais, organizações da sociedade civil, empresas e equipes de trabalho que participam ou desenvolvem projetos relacionados à concepção de espaços públicos. O manual apresenta 7 categorias, que devem ser levadas em conta durante o processo de planejamento urbano: segurança; acessibilidade; mistura de usos; ambiente, paisagem cultural e visibilidade; espaço público fluido; e gestão comunitária e apropriação do espaço público. Cada categoria possui elementos específicos essenciais para a criação de espaços urbanos inclusivos.


Como exemplo brasileiro de estratégias que visam o estabelecimento de uma vida comunitária, apresentamos o manual Parques para Todas e Todos (ALVES, 2020). Com sugestões para a implantação de parques urbanos com perspectiva de gênero, elaborado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre em cooperação técnica com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos e o Instituto Semeia, orienta ações que visam a inovação na gestão dos parques urbanos, configurando espaços melhores preparados para o público, especialmente o feminino. Apresenta 8 categorias, chamadas de dimensões temáticas, que são na verdade os grandes grupos de assunto abordados como práticas para a criarçao de espaços públicos inclusivos, como a participação de diferentes indivíduos (incluindo raça, sexo, condição social), mobilidade integrada e acessível, mobiliário urbano seguro e inclusivo.


Apesar de influenciarem a configuração das cidades e de modelos habitacionais, as contribuições femininas na área foram negligenciadas, silenciadas e, às vezes, até atribuídas a homens, como foi o caso de Denise Scott Brown, que não teve reconhecimento do seu trabalho compartilhado com Robert Venturi. A partir desse cenário, é importante frisar que todo fenômeno de cultura produz e reproduz valores de uma sociedade. Logo se faz necessária a reflexão sobre quais são os valores que estamos consumindo, reproduzindo e perpetuando. Como disse Denise Scott Brown (1989), a maioria das mulheres tem histórias para contar sobre as discriminações que sofreram durante suas carreiras.


Ao chamar a atenção para a falta de reconhecimento das contribuições feministas à teoria e à prática do urbanismo, o percurso da pesquisa mostrou como o trabalho em prol da coletividade, do bem comum e a noção de vida comunitária, resultado das múltiplas facetas da vida cotidiana, esteve presente, desde sempre, nos discursos e práticas urbanísticas desenvolvidas por mulheres.


Autoras: Phâmela Alves, Laura Baccarin, Eloísa Parteka, Maria Rita Soares, Andréa Viana


Referências


ALVES, N. Parques para Todas e Todos: Sugestões para a implantação de parques urbanos com perspectiva de gênero. Porto Alegre, 2020.


BROWN, D. S. Room at the top? Sexism and the star system in architecture. In: Debate. Mascontext, v. 27, 1989.


CARLUCCI, L. Manual de diseño de espacios públicos con perspectiva de género y diversidad - Guía de recomendaciones teórico-prácticas para procesos de diseño e intervención en espacios públicos, 2022.


FONTES, M. L. DE. Mulheres Invisíveis: a produção feminina brasileira na arquitetura impressa no século XX por uma perspectiva feminista. Brasília: Universidade de Brasília, 2016.


HORELLI, L. Experiences of the EuroFem – Gender and Human Settlements Network. 2000. Disponível em: <http://www.eurofem.net/info/lhroma/>. Acesso em: 4 maio. 2022.


JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. 3a ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.


MUXÍ, Z. M. Aplicación de la perspectiva de género al urbanismo y la arquitectura. Experiencias a escala regional y municipal en Cataluña. Ciudad y Territorio Estudios Territoriales, v. 52, n. 203, p. 57–70, 2020.


VIEIRA, C.; COSTA, A. A. Fronteiras de gênero no urbanismo moderno. Feminismos, v. 2, n. 1, 2014.


URBAN DEVELOPMENT VIENNA. Manual for gender mainstreaming in urban planning and urban development. Municipal Department 18 (MA 18), 2013.


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