Imagem: Observatório das Metrópoles
No artigo Gender Equality and Urban Development: Building Better Communities for All, publicado no Global Urban Development Journal em 2006, as autoras Monika Jaeckel and Marieke van Geldermalsen, afirmam que um dos principais fatores que influenciam o uso dos espaços urbanos é a responsabilidade atribuída às mulheres de cuidadoras da família e dos filhos e apresentam sete princípios que poderiam subsidiar as decisões de planejamento urbano para cidades mais inclusivas.
É sabido que a mulher é a principal encarregada dos cuidados com a família, mesmo trabalhando quarenta horas semanais. As consequências desta sobrecarga já foram apresentadas em um post anterior onde falamos sobre como o planejamento das nossas cidades influencia a economia do cuidado. Neste post gostaria de discutir alguns dos princípios do artigo citado, buscando referência em outros autores que também abordam a temática dos estudos de gênero e planejamento urbano.
O uso dos espaços urbanos para atividades do dia a dia
No artigo, este tópico é discutido sob a ótica do uso do solo urbano, citando os efeitos da segregação de um zonemento monofuncional para as cidades e apresentando as vantagens da adoção do zoneamento misto.
O zoneamento misto de uso do solo urbano incentiva o agrupamento de diversas atividades em proximidade. Ter a possibilidade de trabalhar próximo à escola, ao supermercado, ao banco, ou qualquer outro locail que utiliza diariamente reduz o tempo de deslocamento desta mulher, que se divide entre os deslocamentos para o trabalho, para os cuidados com os filhos (levar e buscar da escola, na creche, na casa dos avós, no médico), com a família (ir ao mercado, ao banco, à fruteira …) e familiares. Esta redução de tempo se traduz em qualidade de vida.
Rosa (2010) no artigo Mulher, Cidades e Habitações também defende que “um bom modelo urbano” deve incluir bairros “auto-suficientes” com as várias funções necessárias para a realização das tarefas diárias. A adoção de um zoneamento misto nas nossas cidades reduziria as distâncias, facilitaria a realização das tarefas diárias destas mulheres e traria benefícios que se estenderiam a outros grupos excluídos, que teriam acessos a mais oportunidades e serviços.
A vida urbana é para todos
As autoras apresentam esse princípio sob a ótica da segregação sofrida por alguns grupos sociais (crianças, idosos, mulheres) em consequência das dificuldades de mobilidade nas cidades pela priorização do automóvel.
As cidades brasileiras priorizam o uso do automóvel em detrimento do transporte público. No nosso imaginário urbano o automóvel além de meio de locomoção também assume o significado de status social, associado à parcela mais abastada da população. A maior parte da população, porém, depende do transporte público ou desloca-se a pé. Neste último grupo, as mulheres são a maioria.
Alguns estudos também demonstram que cidades caminháveis apresentam melhores índices de saúde pública (maior parte da população se exercitando, menos poluição pela diminuição do número de veículos) (SPECK,2011), segurança (mais pessoas nas ruas) e de economia de recursos financeiros, visto que custos com transporte seriam diminuídos. Além disso, cidades que priorizam o automóvel facilitam com que moradores exerçam suas atividades diárias em locais distantes de suas casas (JAECKEL E GELDERMALSEN, 2006) o que diminui a percepção de pertencimento a uma determinada comunidade.
O poder da presença
No prólogo da edição brasileira de Cidades para as Pessoas, Jaime Lerner (GEHL, 2015) defende a diversidade urbana – a mistura de usos do solo, de classes sociais, faixas etárias, gêneros e etnias – como promotor de riqueza para as cidades.
Se voltarmos ao clássico livro de Jane Jacobs, Death and Life of Great American Cities, vamos encontrar a autora já em 1961, ano da primeira edição do livro, defendendo que ruas mais animadas e diversas promovem segurança e também a necessidade da combinação de usos principais - definidos por ela como habitação, comércio e serviços – que permitiriam o uso das ruas em diferentes horários, promovendo segurança (JACOBS, 2011).
Além disso, as autoras do artigo trazem uma contribuição importante quando colocam que diferentes grupos sociais, utilizam o espaço público de maneiras diferenciadas, gerando uma troca rica de conhecimentos e vivências para a população local.
A importância da participação local, com engajamento da população local
Doris Cole (1973) quando escreve from Tipy to Skyscraper descreve as tarefas socialmente atribuídas a mulher e recorre a fatos históricos americanos que levaram a mulher a um papel de articuladora das necessidades das suas comunidades. O cuidar atribuído ao feminino se estende para o cuidar da comunidade. No período das duas guerras mundiaIs, com a ausência do homens, muitas mulheres tomaram para si participar das discussões onde eram decididas as benfeitorias das cidades.
Para Jaeckel e Geldermalsen (2006) colocam que considerar as necessidades das mulheres no âmbito das decisões locais contribui para uma cidade ser inclusiva. Imagine decisões sendo tomadas por essas mulheres cuidadoras!
Nós, brasileiros, temos o amparo do Estatuto das Cidades que pressupõe a participação popular na elaboração dos planos diretores das nossas cidades, mesmo que o faça sem a distinção de gênero (CYMBALISTA, 2008).Na prática, porém, a participação feminina é baixa e as reuniões de decisões ou mesmo as discussões de propostas estão muito distantes da maioria das mulheres das nossas cidades. Pouca ou segregada divulgação de datas de reuniões, muitas vezes realizadas em durante o dia, quando muitas estão trabalhando, até a falta de transporte adequado ou de quem cuide dos filhos para que possam participar sâo apenas algumas das razões que dificultam a participação feminina (CYMBALISTA, 2008).
A integração da cultura do cuidado nos espaços públicos
O website National Observer publicou um artigo em 2020 intitulado “Women´s impact on urban design and why it matters” (o impacto da participação das mulheres no desenho urbano e porque isso importa), de Orit Sarfaty, discutindo as mudanças de padrões das cidades canadenses sob a ótica da entrada das mulheres mercado de trabalho. Um dos itens abordados foi denominado “hangouts” (encontros) e discute que a maior parte dos espaços urbanos de encontro foi projetado, por homens, para atividades tidas como masculinas (jogos de futebol, basquete), marginalizando mulheres, crianças e idosos que preferem espaços de convívio para troca de experiências e conversas.
A morfologia “masculina” dos espaços públicos infelizmente também está presente nas cidades brasileiras. Imaginem se tivessémos espaços projetados não somente para mulheres, mas para todos. Jaeckel e Geldermalsen (2006) inclusive fazem referência a estudos que demonstram que homens participam mais de atividades de cuidado quando estas podem ser realizadas em espaços de convívio.
Claramente a discussão não se esgota com estes cinco princípios mas com certeza auxiliam o início da reflexão.
Imagem: Observatório das Metrópoles. Disponível em: https://educacaoeterritorio.org.br/glossario/direito-a-cidade/
Referências:
CYMBALISTA, Renato; SANTORO, Paula; CASELLA, Jane; CARDOSO, Patrícia de Menezes. Plano Diretor Participativo e o direito das mulheres à cidade. Instituto Pólis, 2008. Disponível em: <http://polis.org.br/publicacoes/plano-diretor-participativo-e-o-direito-das-mulheres-a-cidade/>. Acesso em: 30 set. 2018
LERNER, Jaime em GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015.
JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 3 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
JAECKEL, Monika e GELDERMALSEN, Marieke van. Gender Equality and Urban Development: Building Better Communities for All. Global Urban Development Magazine. 2006. Volume 2. Issue 1. Disponível em: https://www.globalurban.org/GUDMag06Vol2Iss1/Jaeckel%20&%20van%20Geldermalsen.htm
ROSA, Edenilse Pellegrini da. Mulher, cidades e habitações. 2010. Disponível em:
SARFATY, Orit. Women's impact on urban design and why it matters. Canada´s National Observer. 2020. Disponivel em: https://www.nationalobserver.com/2020/03/06/opinion/womens-impact-urban-design-and-why-it-matters
SPECK, Jeff. Cidade Caminhável. 1ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.
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