Imagem: Linoca Souza
Começo esse post com uma ideia inicial: na minha opinião o uso da expressão “economia do cuidado” é recente e o entendimento de que as tarefas domésticas e os cuidados com a família são atribuições das mulheres por muito tempo foi passado de geração para geração sem questionamento.
A partir desta afirmação me parece razoável que eu deva tentar esclarecer, ainda que de forma breve, no mínimo três questões: o que é economia do cuidado; porque ainda hoje aceitamos que as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos sejam tarefas atribuídas às mulheres; e porque esta é uma discussão recente e o que isso tem a ver com planejamento urbano. Então, vamos direto aos pontos.
De acordo com a Resolução de n. 1 da 19a. Conferência Internacional de Estatísticas do Trabalho, entende-se por economia do cuidado todo o trabalho exercido por quem cuida, seja ele remunerado (exercido por cuidadores profissionais) ou sem remuneração (socialmente aceito como tarefas de mulheres e meninas).
Desde 2020 estamos convivendo com uma pandemia que evidenciou que as mulheres vivem sobrecarregadas. Esta é uma realidade que afeta não somente as mulheres brasileiras. O artigo How Women are Getting Squeezed by the Pandemic, publicado em maio de 2020 no The New York Times, já alertava para as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no mundo inteiro, mesmo em países onde o trabalho feminino é mais valorizado. Neste mesmo artigo, o entrevistado, Nahla Valji, afirma que a economia formal só é possível por ser subsidiada pelo trabalho não remunerado feminino.
Por aqui, a pandemia trouxe aos jornais relatos de famílias exaustas tendo que conciliar o trabalho em home office com o cuidado com os filhos e a casa. Limpar, organizar, cozinhar, fazer compras, cuidar dos filhos e familiares, ficou muito mais complexo nos últimos meses e, ao acúmulo de tarefas historicamente conhecidas como parte das atividades diárias da mulher, somou-se a necessidade de auxiliar e supervisionar atividades escolares em consequência do fechamento das escolas, além, é claro, de cuidar de algum familiar porventura adoentado.
Mais da metade das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres que por falta de programas sociais adequados, que apoiem todos os cidadãos que eventualmente precisassem parar de trabalhar, muitas tiveram que continuar trabalhando dentro e fora de casa.
Também viu-se que muitas mulheres, em especial empregadas domésticas, diaristas e faxineiras, tiveram que continuar trabalhando fora de casa para garantir o sustento de suas famílias e, ao mesmo tempo, garantir que muitos pais e mães trabalhando no home office pudessem continuar desempenhando suas atividades profissionais, pois os filhos e a casa estavam sendo cuidados. O cuidar passou a ser visto como necessário, mesmo não sendo reconhecido como essencial pelos nossos governantes, e começamos a observar mais e mais discussões sobre a economia do cuidado.
Para entendermos porque o cuidado e o trabalho doméstico são atribuições socialmente aceitas como femininas, precisaríamos voltar no tempo e adentrar uma discussão bastante complexa. Federici (2017) cita a crise demográfica de 1620 e 1630 como sendo a primeira crise econômica internacional que teria redefinido as relações de trabalho, de acumulação de riquezas e o consequente controle da função reprodutiva das mulheres. Estas deveriam ficar confinadas no lar para assegurar sua conduta e a paternidade dos herdeiros, garantindo a transferência de riquezas das famílias burguesas. Poderíamos discutir sobre a sociedade patriarcal que coloca a mulher como domesticada e frágil, que deve se ocupar de tarefas que necessitem de menor força física, muitas vezes invisíveis e à sombra do homem. E claro, como o capitalismo se beneficia do trabalho não remunerado feminino e de muitas maneiras perpetua a imagem da mulher pacata, recatada e do lar.
Um aspecto ainda não muito discutido pela sociedade em geral é que muitas destas mulheres estão sobrecarregadas não somente por questões financeiras, mas também pela falta de um planejamento nas nossas cidades que considere a vida cotidiana no centro das decisões urbanas, valorizando as tarefas de cuidado.
Falou-se amplamente sobre a quantidade absurda (e completamente inaceitável) de famílias brasileiras que vivem em situações precárias, em locais sem saneamento básico e muitas vezes até mesmo sem abastecimento de água, sem condições mínimas de higiene, mas pouco foi feito para resolver o problema. Porém, falta falar também que as mães que precisam continuar trabalhando não têm onde deixar seus filhos, porque escolas e creches estão fechadas, ou com horário reduzido que impede que possam trabalhar porque a creche é longe do trabalho. Que as casas onde moram não possuem espaço suficiente e adequado para moradia, quanto mais para o trabalho e o estudo dos filhos. Que o transporte público ineficiente faz com que precisem se aglomerar ao ir e vir trabalhar, ou para cuidar de algum familiar adoentado, ou para buscar atendimento médico. Ao descortinar essas carências percebemos como o planejamento das nossas cidades influencia a economia do cuidado.
Não resta dúvida que a pandemia está trazendo a tona inúmeros problemas nas nossas cidades e no nosso dia a dia, e que é complexo estabelecer prioridades, mas me parece que cuidando das nossas mulheres, priorizando o básico (ou de acordo com o ThinkOlga, os problemas centrais: Violência, Saúde e Economia e Trabalho) já possamos ver algum resultado prático, transformando desigualdades históricas.
Créditos da Imagem: Linoca Souza, 2021. Publicada em: https://revistapesquisa.fapesp.br/economia-do-cuidado/
Referências:
Donner, F. 2020. How Women are Getting Squeezed by the Pandemic. The New York Times. Disponível em:https://www.nytimes.com/2020/05/20/us/women-economy-jobs-coronavirus-gender.html. Acesso em 28 mar 2021.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
Gates, Melinda. Bill hoje a louça é sua. Revista Trip. 2016. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/melinda-gates-fala-sobre-igualdade-de-genero-e-divisao-de-tarefas-domesticas. Acesso em 28 mar 2021.
International Labour Office. Care work and care jobs for the future of decent work. Geneva. 2018. Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_633135.pdf>. Acesso em 28 mar 2021.
Think Olga. Mulheres em Tempos de Pandemia - Os agravantes das desigualdades, os catalisadores de mudanças. Disponível em: https://thinkolga.com/report/. Acesso em: 28 mar 2021.
Gates, Melinda. Bill hoje a louça é sua. Revista Trip. 2016. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/melinda-gates-fala-sobre-igualdade-de-genero-e-divisao-de-tarefas-domesticas. Acesso em 28 mar 2021.
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