top of page
Buscar
Foto do escritorMaria Rita Soares

O pensamento feminista negro pela perspectiva de Grada Kilomba

A psicóloga, teórica e artista interdisciplinar Grada Kilomba nasceu em Lisboa em 1968. Descendente de angolanos, portugueses e são-tomenses, afirma que as formas dominantes de produção do conhecimento espelham as relações de poder sociais, raciais e de gênero e propõe uma retomada do lugar e da voz negra, silenciada ao longo da história. Pesquisa questões de gênero e pós-colonialidade e leciona, nessa área de abordagem, em várias universidades internacionais. A obra de Kilomba é imprescindível para discutir as questões de racismo, evidenciando como tem sido atualizado, transformado e perpetuado na nossa sociedade.


Abordando o racismo genderizado produzido no cotidiano, ou seja, o racismo de gênero, Grada Kilomba fala, sobretudo, sobre a subjetivação das mulheres negras por remeterem ao trauma colonial. O termo está relacionado a dupla opressão das mulheres negras, que advém de aspectos do racismo e também do sexismo. Permitindo uma compreensão de como esses dois aspectos influenciam nos processos de identidade, e reconhecendo que as mulheres negras são atravessadas por relações de subalternidades, a autora propõe que “para reconhecer a realidade das mulheres negras, temos que distinguir os entrelaçamentos de raça e gênero em estruturas de identificação" (KILOMBA, 2019, p. 101).


Racismo e sexismo constituem, portanto, dois marcadores sociais relevantes para a investigação sobre eixos de opressão. Ao abordar a questão das mulheres negras, a discussão sobre as diferenças sociais não é suficiente, pois é necessário questionar as relações de poder estabelecidas desde a colonização e que continuam sendo reproduzidas até hoje. Esse processo criou uma cegueira coletiva que faz com que as injustiças sofridas pelas mulheres negras não sejam reconhecidas pela sociedade em geral, fortalecendo um privilégio sexista e branco.


Nós vivemos em uma sociedade que continuamente reflete uma imagem que está reduzida a si próprio, uma ideia colonial em que todas as outras pessoas são excluídas e marginalizadas, e os outros todos só podem existir se forem a imagem dele próprio. Neste sentido, a obra de Grada faz uma referência ao Narciso, que sabe tudo mas que decide não saber e reduz o mundo dele a uma imagem de si próprio, acreditando que a imagem que está sofrendo é uma outra pessoa, quando, na verdade, trata apenas dele próprio.


Neste sentido, no movimento de se tornar sujeito, a autora demonstra como as pessoas negras são construídas como "outro”, dando ênfase para a mulher negra, que seria o "outro do outro". Se refere à ideia de que, em um contexto de opressão, o opressor cria uma narrativa sobre o "outro" que o coloca em uma posição inferior e subordinada. No entanto, Kilomba argumenta que essa narrativa também cria um "outro do outro" - uma imagem idealizada do opressor que é usada para justificar e sustentar a opressão.


Acreditar que a marginalização existe pela falta de conhecimento é uma narrativa que nos acompanha constantemente. Para a autora não se trata de um mito. É, na verdade, um exercício de poder, o privilégio de não precisar saber. Assim, podemos dizer que a luta contra a opressão não é apenas sobre desafiar a imagem negativa que o opressor tem do oprimido, mas também sobre desafiar a imagem idealizada do opressor que é usada para justificar a opressão. É preciso reconhecer a complexidade dessas dinâmicas e trabalhar para desfazer as estruturas de poder que as sustentam.


Grada expõe estruturas hierárquicas estéticas e normativas às quais corporalidades negras estão constante e institucionalmente submetidas, evidenciando silêncios que estão presentes no cotidiano de mulheres, homens e crianças negras, assim como as feridas coloniais. É sobre este contexto que ela escreve o livro "Memórias da Plantação - Episódios de racismo cotidiano” [Ed. Cobogó, 2019], uma obra originada de sua tese de doutoramento e que remete a um sistema escravagista, a "plantation".


Utilizando a metáfora da plantação, Grada descreve as relações de poder que moldaram a história colonial e continuam a afetar as dinâmicas sociais contemporâneas. Ela examina como o racismo se manifesta em várias esferas da vida, incluindo a cultura popular, a linguagem, a política e a vida cotidiana, explorando, assim, o legado do colonialismo e suas consequências em nossa compreensão da identidade, história e poder.


A "plantation" tem uma forte associação com o sistema de escravidão que existiu em muitos países, baseado na plantação de latifúndios e monoculturas que foram estabelecidas utilizando mão de obra escrava, a partir de uma estrutura senhor/proprietário e escravizado/objeto. Essas plantações eram frequentemente lideradas por proprietários brancos ricos que possuíam grandes áreas de terra e usavam a força de trabalho de escravos negros para cultivar e colher as culturas, caracterizado por desigualdade social e econômica extrema, e onde a violência era comum.


A partir da estrutura dessa relação, fica evidente o controle político sobre os territórios e sobre quem tem o poder de consumo, fortalecendo uma ideia segregacionista de que cada grupo tem o seu lugar social. Faz com que fronteiras raciais se revelem no nosso cotidiano tentando impedir o direito de liberdade de habitar todo e qualquer espaço: “A necessidade de regular a distância física de pessoas negras e de definir as áreas que elas mesmas podem usar, revela uma dimensão muito importante do racismo cotidiano relacionada a fantasias de contágio racial.” (KILOMBA, 2019, p. 167).


Tendo a sociedade esses valores políticos e sociais enraizados como base e mantidos, de maneira velada, até os dias atuais, a autora propõe um percurso, dividido em cinco etapas, de conscientização coletiva sobre as feridas e dores causadas pela história colonial e um processo psicológico fundamental para o desmantelamento do racismo em cinco etapas: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.


Negação: mecanismo de defesa inconsciente do ego que busca resolver conflitos emocionais por meio da negação dos aspectos desagradáveis da realidade externa, bem como dos sentimentos e pensamentos internos, que implica, fundamentalmente, em não reconhecer a verdade. Quando o sujeito nega ter certos sentimentos, pensamentos ou experiências, mas continua afirmando que outra pessoa os tem, a informação original é negada e projetada sobre os outros. A recusa é frequentemente confundida com negação, que é quando um sentimento, pensamento ou experiência é admitido conscientemente em sua forma negativa, como, por exemplo: "nós não estamos tirando o que é deles" ou "nós não somos racistas”.


Culpa: é um sentimento vivenciado a partir de um ato já cometido, ou seja, o racismo já aconteceu, criando um estado efetivo de culpabilidade. As respostas comuns à culpa estão na tentativa do sujeito branco de construir uma justificativa lógica para o racismo ou uma tentativa de descredibilizar a ação, como por exemplo, “nós não queríamos dizer isto neste sentido” ou “você entendeu mal”. Essa conduta contribui para a construção de uma ideia de que a questão racial, na verdade, não importa como estratégia para reduzir tanto o senso de culpa quanto os desejos inconscientes agressivos em relação aos "outros".


Vergonha: enquanto a culpa é estabelecida pela ideia de transgressão de uma obrigação, a vergonha está conectada ao sentido de percepção e ocorre quando o indivíduo falha em atingir um ideal de comportamento determinado por si mesmo. O sentimento é resultado de um conflito e provocado por experiências que colocam em questão as [pre]concepções sobre nós mesmos e revela uma percepção através dos olhos de outros indivíduos. Nesta etapa o sujeito branco se dá conta sobre os privilégios do seu lugar social e compreende que a percepção das pessoas negras sobre ele pode ser diferente da noção que tem de si próprio. A "branquitude" passa a ser vista como uma identidade privilegiada.


Reconhecimento: talvez o mais importante passo para o processo de reparação e desmantelamento das estruturas que perpetuam o racismo, o reconhecimento vem após a vergonha, que é o momento em que o sujeito branco reconhece a sua própria "branquitude" ou o seu racismo. Trata-se de um processo de aceitação da realidade e da percepção de outras pessoas, onde o reconhecimento é, portanto, a transição da fantasia para a realidade - não se trata mais de como o indivíduo gostaria de ser visto, mas sim de quem ele realmente é. Também, não se trata mais de como o indivíduo gostaria que os outros fossem, mas sim de quem eles realmente são.


Reparação: neste estágio há uma espécie de negociação do reconhecimento, é um processo em que o indivíduo negocia a realidade. Nesse sentido, reparação é o ato de corrigir o mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios. Esse processo envolve reconhecer a desigualdade racial e trabalhar para desmanchar as estruturas que perpetuam essa desigualdade. Somente assim as pessoas negras poderão ter acesso aos mesmos privilégios e oportunidades que as pessoas brancas.


Os cinco passos acima apresentados permitem compreender que a conscientização do racismo não é apenas uma questão moral, mas também um processo de desconstrução de relações hierárquicas, uma estruturação social que exige luta, exposição, diálogo e constância. Neste sentido, a autora sugere uma substituição de questionamentos. Ao invés de fazer a pergunta comum: “eu sou racista?”, indivíduos brancos devem perguntar a si mesmos: "como posso desmantelar meu próprio racismo?”.


É importante reconhecer que a forma como o conhecimento é produzido e transmitido é um reflexo das desigualdades e opressões presentes em nossa sociedade. Nós vivemos em um espaço branco que exclui e marginaliza muitas outras identidades, uma sociedade centrada e ocupada em reinventar o passado e que tem muita dificuldade de ficar no presente ou de construir um [novo] futuro.


Ao explorar as diferentes dimensões do racismo, e apreender como o fenômeno opera sobre as pessoas negras e sobre o processo de seu silenciamento, a obra de Grada Kilomba tem papel central no desenvolvimento de uma crítica pós-moderna e apresenta-se fundamental para os dias atuais, oferecendo uma nova perspectiva aos debates contemporâneos.



Fonte da imagem: COSTA, 2019.



Bibliografia:


COSTA, Luísa. Grada Kilomba: ’Politicamente incorreto é frescura de homem branco’. Revista Veja, 25 de setembro de 2019. Acesso em 01 Mar 2023. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/grada-kilomba-politicamente-incorreto-e-frescura-de-homem-branco/.


KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.


NETO, Jaqueline de França. Racismo genderizado e processos de subjetivação: traumas coloniais e reexistências no Fórum Estadual de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. 2021. 123f. Dissertação (Mestrado em Relações Étnico-Raciais) - Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/Rio de Janeiro.


78 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page