Fonte: Colagem do Autor, 2021.
No último dia 25 de abril foi realizada a 93.ª Cerimônia de entrega dos Academy Awards, o Oscar 2021. Neste ano, as profissionais mulheres da indústria cinematográfica somaram 78 indicações, o maior número já registrado na premiação, que totaliza 209 indicações. Em 2020, 68 mulheres estavam entre as indicadas, o que demonstra crescimento no último ano, ainda tímido, quando comparado aos anos de apagamento feminino na premiação. Percebe-se a dimensão do atraso, ao averiguar que em 2021 foi a segunda vez em 93 anos que um filme dirigido por mulher ganha o Oscar principal, com o filme “Nomadland” da diretora Chloé Zhao. Com o filme “Minari” a atriz Youn Yuh-jung foi a segunda atriz asiática a receber o Oscar.
Um dos primeiros sinais de consciência mais sensível ao gênero na indústria do cinema foi anunciado em agosto de 2020 pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim, onde a divisão dos prêmios de atuação por gênero foi extinta para a edição de 2021, sendo assim, homens e mulheres concorrem aos mesmos prêmios. Em 2015, Viola Davis tornou-se a primeira mulher negra a ganhar um Emmy Awards, no seu discurso de vitória enfatizou: “a única coisa que separa as mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis que simplesmente não estão lá”. Junto a esta premiação, Viola Davis soma um Oscar e dois Tony Awards, alcançando a Tríplice Coroa da Atuação – Cinema (Oscar), Televisão (Emmy) e Teatro (Tony).
A Figura 1 traz nove vezes em que as mulheres fizeram história no Oscar.
Figura 1: Mulheres fazem história no Oscar
Fonte: Elaborado pelo autor (2021), com base em Universa Uol (2019)
No cinema e no audiovisual brasileiro, a insurgência feminista se manifestou em 2015, segundo Érica Sarmet roteirista e pesquisadora de cinema e audiovisual e mestre em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Marina Cavalcanti Tedesco professora do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense UFF. Juntas discutem e trazem dados sobre as mulheres no cinema, artigo este, parte do livro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda “Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade” e que serve de referência nas discussões a seguir.
Uma série de iniciativas dedicadas a reivindicar os direitos das mulheres e discutir o machismo no mercado de trabalho além das discussões sobre discriminação de raça, classe, orientação sexual e identidade de gênero fizeram parte dessa insurgência. Esses debates foram impulsionados pelas hashtags feministas popularizadas em Hollywood, na 87.ª premiação do Oscar: #oscarnowhite [Oscar muito branco] e #askhermore [Pergunte mais a ela]. A atriz Patricia Arquette, no palco ao receber o prêmio de melhor atriz pelo filme Boywood, fez um discurso pedindo igualdade salarial e direitos para as mulheres americanas. As desigualdades são ainda mais percebidas quando verifica-se as funções exercidas no audiovisual (Figura 2). Apenas 11 dos 100 filmes de maior bilheteria de 2014 foram escritos por mulheres, e apenas 19 deles tiveram mulheres como produtoras. De 375 filmes feitos pelos Big Six (6 maiores estúdios de cinema de Hollywood) entre 2010 e 2014, apenas 13 foram dirigidos por mulheres.
Figura 2: Desigualdades nas funções do audiovisual
Fonte: Elaborado pelo autor (2021), com base em Universa Uol (2019)
Na mesma pesquisa apresentada pela New York Films Academy demonstra-se a forma estereotipada e sexualizada que as mulheres foram retratadas nos 500 maiores filmes entre 2007 e 2012 (Figura 3).
Figura 3: Forma de retratação das mulheres em filmes
Fonte: Nó de oito e New York Films Academy
No Brasil, o grande estopim para a discussão da questão da mulher no cinema foi o filme “Que horas ela volta?” dirigido por Anna Muylaert, ele conta a história da empregada doméstica Val (Regina Casé) e sua relação com a filha Jéssica (Camila Márdila), que se recusa a aceitar calada as pressões decorrentes da sua classe social. O filme teve um grande sucesso de público e de crítica, com mais de 490 mil espectadores em uma bilheteria que ultrapassou os 6,8 milhões de reais. Todo o sucesso alcançado pelo filme dirigido e protagonizado por mulheres, levantou a questão de gênero, que se tornou ponto de conflito no lançamento do filme em Recife, quando dois conhecidos realizadores recifenses e amigos de Muylaert, Cláudio Assis e Lírio Ferreira, entraram na sala supostamente bêbados interromperam o debate diversas vezes, além de tecerem comentários machistas para o público. A diretora relatou a imprensa “um homem tem dificuldade de ver uma mulher no papel de protagonista”, e que para ela nunca passava por sua cabeça que o filme era feminista pois, era algo natural.
A partir desse conflito, Muylaert entrou em contato com várias ONGs feministas que pesquisam sobre a presença feminina nas telas do audiovisual, o que a levou a algumas constatações. Levando em conta os últimos 56 anos de premiação do Oscar para melhor filme, 45 vezes o protagonista era homem contra 4 vezes sendo mulheres. Há, portanto, uma construção mental de normalidade: para se receber o Oscar de melhor filme, a primeira coisa é ter um protagonista homem. As mulheres estarem presentes neste meio pesquisando, estudando e debatendo lança luz a tudo isso, porque o machismo é algo invisível, assim como racismo e homofobia, declara Muylaert.
Esse acontecimento levou a criação da página no Facebook “Mulheres do Audiovisual Brasil'', a partir do encontro de mulheres do setor, motivadas por Anna Muylaert e Malu Andrade diretora de inovação da SPCine, em agosto de 2018 a página contava com 18 mil seguidores. Logo em seguida outros movimentos puxados pelas hashtags #PrimeiroAssédio e #Meuamigosecreto ganharam extensão nacional.
Ainda em 2015, o curta-metragem Kbela dirigido por Yasmin Thayná (23 anos), narra o processo de uma menina de periferia em se descobrir negra e assumir os cabelos crespos. O curta levantou novas discussões de gênero e de raça no Brasil. Kbela é um filme experimental, feminista e antiracista, que busca colocar em foco as mulheres negras e suas narrativas historicamente invisíveis no cinema brasileiro. Protagonizado por mulheres negras e com uma equipe de produção negra, Kbela teve uma trajetória diferente do circuito de curta-metragista tradicional: sua história não se deu em um festival, mas em uma sessão lotada no cine Odeon no Rio de Janeiro, sala com capacidade para mais de 500 pessoas. O curta passou por cineclubes, assentamentos, escolas públicas e praças antes de chegar aos festivais nacionais. Kbela busca contribuir para que o “Brasil de todas as telas, seja realmente de todas”, onde todas as pessoas se sintam representadas, e não somente as brancas.
Sarmet e Tedesco trazem outros dados interessantes para esta discussão:
A primeira diretora negra a dirigir um longa-metragem no Brasil foi Adélia Sampaio com filme “Amor Maldito” de 1984. Kbela e Amor Maldito foram exibidos no 8° Festival de Realizadores, e com a participação de suas diretoras e da curadora do evento, realizou-se uma mesa de debates intitula “Por um cinema negro no feminino”;
Sobre a questão de diversidade no cinema brasileiro, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) analisou as produções cinematográficas no país entre 2002 e 2012 e constatou: as mulheres dirigiram apenas 13,7% dos filmes de maior bilheteria, enquanto pessoas negras e pardas somente 2%, sendo que nenhuma das 218 produções analisadas havia sido dirigido por uma cineasta negra;
Outro fato significativo ocorreu em outubro de 2015, quando Anita Rocha da Silveira ganhou o prêmio de melhor direção no 17º Festival do Rio pelo longa-metragem “Mate-me por favor”, retratando uma onda de estupros de meninas adolescentes na Barra da Tijuca;
No mercado audiovisual quanto mais dinheiro em jogo para produzir algo, menos mulheres você encontra. Mulheres são 15% a 20% das diretoras em âmbito geral. Há mais mulheres em curtas e documentários, quando fala-se em longas-metragens de milhões de reais, não existem mulheres no comando, e isso acontece em todo o mundo;
O feminismo chegou com força para escancarar as desigualdades nas áreas que menos empregam mulheres no audiovisual: a direção de fotografia. Das 1344 obras constituintes de espaço qualificado que tiraram Certificado de Produto Brasileiro (CPB) na Ancine em 2015, 12% tiveram diretoras, e 4% (desses 12%) com coparticipação masculina. E, em 2016, apesar de ter havido um aumento no número de títulos com CPB, que passou para 1655, a participação das mulheres se manteve a mesma.
A diretora Anita Rocha da Silveira relembra seu primeiro curta-metragem “O vampiro da meia-noite” de 2008 e relata algumas conclusões: “neste meu primeiro curta-metragem o protagonista era um homem. Quando comecei a passar o filme foi quando me dei conta da noção engendrada nas próprias mulheres de que o homem é mais ‘universal’, e que, portanto, quando o homem protagoniza, está se falando de algo universal. Por que falar mais de homens? Se eu conheço mais sobre mulheres”. Após isso, a diretora produziu o filme “Handebol” com o elenco quase 100% feminino. Ainda durante o 17º Festival do Rio, Anita se questionou: Por que nos festivais tem mais homens premiados? Por que temos tão poucas representantes aqui? A resposta: Porque é um bando de homens selecionando um bando de homens!
Em 2016, as questões sobre gênero e raça se intensificaram. Sem abertura para participar como realizadoras, juradas e curadoras, as mulheres partiram para um duplo movimento. Por um lado, o exercício sistemático de uma crítica contundente ao que já existia; por outro, a construção de ambientes onde pudessem assistir e debater sua produção. No mesmo ano foi fundado o Coletivo das Diretoras de Fotografia do Brasil (DAFB). O coletivo surgiu da reação a uma publicação de um grande site com os novos talentos da cinematografia brasileira, ‘só com homens brancos’ pois, segundo a publicação, não haviam encontrado mulheres representantes. Outro ponto importante foi o ingresso no DAFB de mulheres que não eram diretoras de fotografia, como operadora de câmera, primeiras e segundas assistentes de câmera, eletricistas, coloristas, entre outras funções relacionadas à equipe de fotografia. Por fim, outro grande passo foi abertura do coletivo de mulheres cis e trans, para a inclusão também de homens transgênero.
Bia Marques fotógrafa integrante do DAFB, percebe que inconscientemente adquiriu posturas masculinas para trabalhar com audiovisual, seja no trato pessoal, seja na maneira de se vestir. Ela percebeu que várias outras mulheres igualmente comentaram terem assumido a mesma postura masculina, como estratégia para lidar com os colegas, nas equipes internas de câmera, elétrica ou maquinária, como no set em geral.
Alguns acontecimentos demonstram perspectivas interseccionais para o feminismo no cinema e no audiovisual brasileiro. Em 2017, o 50° Festival de Cinema de Brasília foi palco de debates acalorados sobre a criação e representação das pessoas negras no cinema pela primeira vez em 50 anos de festival, mulheres negras concorreram nas mostras de curtas e longas-metragens: Jéssica Queiroz, com Peripatético, e Glenda Nicácio, com “Café com Canela”, levantaram o debate do cinema lésbico e negro.
Das pioneiras nas premiações do audiovisual à formação de coletivos ou “ajuntamentos” (como sugere Adélia Sampaio), comprova-se a importância da representatividade. Mulheres contando sobre suas vivências a partir de seus olhares e com suas vozes é um ato de resistência que abre caminho para discussão e confrontação do machismo e racismo estrutural no setor audiovisual, bem como a todos aqueles que assistem a estas obras. Sarmet e Tedesco acreditam que o futuro com a presença efetiva de mulheres de todas as gerações, classes, raças e orientações sexuais é um sonho feminista para o nosso cinema que, felizmente, começa a se tornar realidade.
Referências:
Livro Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade;
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