Fonte: www.cidades.co
O campo que abordamos, como grupo de estudos, não é apenas aquele do conhecimento científico, mas também o do cruzamento das nossas vivências estabelecidas no espaço social da cidade. Questionando a nossa prática como urbanistas e possibilitando uma compreensão mais crítica do que a que estamos sujeitos enquanto cidadãos, nos propomos a reconhecer onde se encontra e principalmente como se constitui o lugar da mulher na cidade.
A partir do cruzamento dessas relações sociais e profissionais, muitos questionamentos passaram a atravessar o meu cotidiano. Um processo que me sensibilizou às diferenças, em especial as de gênero. Já como pesquisadora, me interessam os espaços públicos da cidade: as ruas, as calçadas, as praças, os parques, e principalmente os encontros neles possibilitados. É neste sentido que proponho este texto, reconhecendo a importância de estabelecer um olhar crítico e analítico sobre ser mulher na cidade contemporânea, em especial sua apropriação do espaço público, e refletir sobre a diferenciação da experiência feminina de cidade em relação à masculina. Para tanto, é necessário primeiramente definir alguns conceitos.
O termo público surgiu por volta de 1470 significando “bem comum na sociedade”, e somente cerca de setenta anos mais tarde a palavra adquiriu o sentido daquilo “que é manifesto e está aberto à observação geral” (SENNET, 1988, p. 30). É uma expressão do espaço comum, e quando nos referimos aos espaços públicos, estamos tratando da identidade da cidade. Além disso, no espaço público também está introduzido um princípio de liberdade que o transforma em lugar de discussão e de deliberação, condição importante para o desenho de um espaço político, visto que, além da vocação e da diversidade de usos, nesses espaços se manifesta a essência da vida pública e cotidiana através das trocas e relações humanas, assim como dos conflitos e contradições da sociedade (LEVY e LUSSAULT, 2003).
Podemos dizer então que o espaço público é resultado de uma construção social ligada à necessidade de sociabilidade entre os cidadãos e, na medida em que é construído, tem a capacidade de produzir novas relações de sociabilidade. Logo, para compreendermos a sociabilidade existente no espaço público contemporâneo, bem como a sua complexidade, é fundamental identificá-lo enquanto mercado e lugar de consumo com capacidade de produzir não só valor de troca, mas também apartação.
No entanto, Richard Sennett, um dos mais instigantes sociólogos da atualidade, questiona o espaço público como local de interação. O autor defende que as dinâmicas do cotidiano transformaram as áreas públicas em locais de passagem e não de estar, acarretando no seu apagamento como espaço de convívio, que permanece restrito aos que trabalham ou vivem em determinada região, não havendo assim diversidade social. Afirma que as pessoas estão em público não para interagir, mas para exercer o direito de estarem sozinhos em público, reduzindo o conhecimento compartilhado de trato social ou civilidade a uma questão de observação.
Cabe aqui uma reflexão: a quem é dada essa possibilidade de observar? Uma mulher sozinha em público sente-se segura? O espaço público é um lugar historicamente feminino?
Pitágoras afirmava que “uma mulher em público está sempre fora do lugar”. Durante séculos, a vida da mulher esteve associada ao ambiente privado, mais precisamente ao espaço doméstico. E, consequentemente, a vida do homem era atribuída ao espaço público. Nader (2002) considera que esta delimitação do ambiente de atuação do homem e da mulher é uma espécie de garantia que a sociedade criou para que cada sexo cumprisse, com bastante precisão, as diferentes atribuições estabelecidas aos distintos papéis sociais, delimitando os campos em que poderiam operar a mulher e em quais poderiam atuar o homem, além de construir, culturalmente, a identidade social da mulher. Segundo Saffioti (1987), a atribuição da responsabilidade da casa e dos filhos como exclusivamente feminina, reforça e sustenta esta nítida atribuição do espaço doméstico à mulher. A autora destaca ainda, que independente de condições socioeconômicas, de classe ou raça, essa identidade permanece no centro.
Para Calió (1997, p. 05), nas análises de gênero, as contradições de classe que caracterizam os espaços urbanos só podem ser entendidas a partir de uma estrutura patriarcal. "Estudiosos urbanos que usam conceitos como segregação, direito à cidade, revolução urbana, o fazem em termos de classes sociais e de luta de classes, dificilmente incorporando aí análises de gênero. É certo que a origem de classe determina a situação de cada indivíduo na cidade. Mas, quando pensamos nas mulheres, essa análise não nos basta. Pelo contrário, ela é redutora, primeiro porque coloca implicitamente cada mulher na classe social de seu pai/marido. Depois, não consegue reconhecer cotidianamente na cidade o lado patriarcal que sustenta os condicionamentos sociais que oprimem as mulheres".
A prática desigual de uso do espaço público entre homens e mulheres não foi percebida, durante muito tempo, como uma questão relevante, estando no centro do debate as divisões espaciais provocadas por questões econômicas, culturais e políticas. Nas cidades gregas, por exemplo, os espaços das relações sociais eram identificados em função do gênero masculino. Atividades relacionadas aos negócios, a realização de ofícios e tarefas políticas só poderiam ser realizadas em espaços públicos concedidos aos homens livres, ao passo que as áreas exclusivamente femininas raramente manifestavam-se na estrutura da cidade. A única exceção eram os templos dedicados à alguma deusa, que recebiam mulheres mães durante alguns dias do ano para a celebração de sua divindade. Ainda assim, os templos femininos encontravam-se nas periferias, enquanto os locais de divindades masculinas localizavam-se no centro das cidades (RODRIGUES, 2017).
A diferente relação das mulheres com o espaço urbano em relação aos homens já era hipótese proposta por Simmel (1989) na virada do século XIX. Tal diferença era atribuída como resultado tanto da “própria natureza psico-física e supra-histórica", quanto da restrição das atividades femininas ao ambiente da casa, visto que, para este autor, “os gestos de um ser humano dependem dos espaços nos quais ele se move habitualmente”. (SIMMEL, 1989, p. 142).
Embora a ideologia burguesa da primeira década do Século XIX tenha restringido o espaço da mulher à casa, não significa que elas não estavam no espaço público. No entanto, essa presença não era sinônimo de visibilidade. Elas saíam especificamente para a realização de tarefas domésticas, como lavar a roupa, ir ao mercado etc, ou seja, estavam no espaço público para melhor servir a família, reforçando a ideia de que a sua legitimidade estava restrita ao espaço residencial.
O caráter público do espaço estava relacionado a um sentimento de liberdade e permitia aos homens uma experiência de mundo relativa ao conhecimento de si, enquanto para as mulheres era um "lugar de domínio imoral, onde se corria o risco de perder a virtude" (SENNETT, 1998, p. 39). Talvez esta seja uma condição sustentada até hoje. Anthony Giddens, no livro "A Constituição da Sociedade" (1989), apresenta uma contribuição sobre as formas de desigualdade de gênero que reforçam tal percepção:
Fonte: Giddens, 1989
A antropóloga, socióloga e psicanalista Elizabeth Bott (1976) apresenta uma mudança de gênero na análise das relações sociais, adicionando o papel da mulher às discussões. Embora esteja no centro das análises, a figura feminina mantém-se relacionada à família. A autora aborda a formação das relações de vizinhança utilizando o conceito de rede como ferramenta para a análise de relações pessoais em múltiplos contextos, que embora aconteçam no espaço público, dependem basicamente das relações familiares. Sua hipótese estabeleceu uma relação entre classe social e nível de segregação dos papéis conjugais, visto que a estrutura da rede social, sempre pautada pelo homem, determinava a conduta e, em especial, o lugar que seria ocupado na vida de ambos, em sociedade.
Já o começo das metrópoles é permeado por um imaginário da rua como local perigoso. Rago (1984) destaca que no contexto de uma misoginia dominante, às mulheres era atribuída uma vulnerabilidade e uma força muscular inferior. E se a rua, lugar de encontros imprevistos e imprevisíveis, representava perigo para os homens, ela constituiria ainda mais risco para a mulher, que, por causa de sua “natureza” frívola e leve, só podia caminhar nestes espaços "sob o olhar atento e o braço forte de um homem”, visto sua incapacidade de evitar as armadilhas de um mundo de aparências.
Atualmente, o afastamento das mulheres dos espaços públicos está diretamente relacionado com a questão da segurança, e o percentual de mulheres nestes espaços é inclusive utilizado como indicador de segurança. Não porque a presença feminina torne qualquer lugar mais seguro, mas pelo fato de um lugar seguro atrair também o público feminino (COURB, 2016).
Podemos dizer, então, que historicamente homens e mulheres experienciam o território de formas diferentes e inclusive afirmar que talvez esta diferença não esteja relacionada apenas pelas práticas cotidianas e atividades desempenhadas por cada um, mas fundamentalmente pelo que se convencionou chamar de comum, ao longo do tempo, visto que o espaço público é sempre construído e moldado pela coletividade.
Esse distanciamento entre a mulher e o espaço público permite concluir que o espaço urbano das cidades, de maneira geral, não é pensado para as mulheres. No entanto, não significa que elas não produzem espaço. É justamente o contrário: o trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres, que geralmente ocorre nos espaços privados, permite que toda a dinâmica de uma cidade aconteça. Além disso, o ideário de uma cidade para todos é anulado pela constituição de ambientes urbanos a partir de perspectivas privilegiadas ao longo da história.
O comportamento da mulher acaba sendo, assim, moldado por imposições de um espaço produzido por e para os homens. Mas aos poucos, com a constante reivindicação de direitos das/para as mulheres, essa situação vem se modificando e permitindo uma análise do lugar das mulheres no espaço urbano e das diferentes lógicas temporais e espaciais de organização e de apropriação cotidiana da cidade. Neste sentido, é importante que os projetos de espaços públicos reconheçam essa segregação de gênero, tendo a perspectiva feminina no centro das decisões, privilegiando o acesso de mulheres à cidade, não só para que suas necessidades sejam representadas, mas também garantindo a sua participação entre os tomadores de decisões.
Referências
BOTT, E. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
CALIÓ, Sonia Alves. Incorporando a Questão de Gênero nos Estudos e no Planejamento Urbano. In: Encuentro de Geografos de America Latina, Resúmenes. Observatório Geográfico, v. 1,1997.
COURB Brasil. "Mulheres no espaço urbano: como fazer cidades melhores para elas?" 04 Jul 2016. ArchDaily Brasil. Acessado 8 Set 2021. <https://www.archdaily.com.br/br/790741/mulheres-no-espaco-urbano-como-fazer-cidades-melhores-para-elas> ISSN 0719-8906
GIDDENS, Anthony. A constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
LEVY, J.; LUSSAULT, M. Dictionnaire de laGéographie: et de l`espacedessociétes. Paris: Belin, 2003.
NADER, Maria Beatriz. A condição masculina na sociedade. Dimensões: Revista de História da UFES, Vitória, n. 14, p. 461-480, 2002.
RAGO, M. Do cabaré ao lar, a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
RODRIGUES, Clarice Fernandes. A mulher no espaço público - uma reflexão acerca do processo de urbanização contemporânea e da (não) participação das mulheres na produção do espaço. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.
SAFFIOTI, H. I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SIMMEL, Georg. Philosophie de la modernité: la femme, la ville, l’individualisme. Paris: Payot, 1989. v. 1.
Comments