Entre os dias 22 e 26 de maio de 2023, aconteceu em Belém o XX ENANPUR - Encontro Nacional da ANPUR – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Esse ano teve novidades nas sessões temáticas. Foi criada a sessão “Gênero, etnia e diversidade no campo e na cidade”, que estava repleta de pesquisas incríveis e teve suas cinco subseções lotadas. Nós estávamos lá para acompanhar e para apresentar o artigo “Mobilidade urbana com perspectiva de gênero: Estudo comparativo dos trajetos diários de homens e mulheres com alto nível socioeconômico e escolaridade em Curitiba”. O estudo foi desenvolvido por Agnes Araújo, Phamela Alves, Eloísa Parteka, Rafael Bosa e Geisa Bugs.
No artigo analisamos comparativamente se as mulheres possuem padrões de deslocamento similares aos dos homens estando no mesmo nível socioeconômico e de escolaridade. Partimos do entendimento de que por razões estruturais da nossa sociedade, as mulheres enfrentam grandes dificuldades para usufruir das oportunidades oferecidas no meio urbano de forma igualitária e segura e que a mobilidade é um elemento essencial para que as mulheres possam ter pleno acesso à cidade (FENSTER, 2005, 2022).
As mulheres têm uma percepção diferenciada do espaço urbano, pois se preocupam muito mais com sua segurança e acessibilidade. Logo, o gênero desempenha um papel importante na tomada de decisão das mulheres quanto à mobilidade, afetando vários aspectos, como distância, tempo, duração, modal de transporte escolhido e motivo da viagem (LOUKAITOU-SIDERIS, 2016). Além disso, fatores pessoais, como renda, educação, idade, profissão e estado civil também influenciam nessas decisões. Entretanto, o planejamento das cidades, da mobilidade urbana e dos sistemas de transporte tende a desconsiderar as diferenças de gênero (COL·LECTIU PUNT 6, 2019; MUXÍ, 2022). É direcionado a um usuário ‘padrão’, um homem, branco, de meia-idade e com alto status socioeconômico.
Foram mapeados os trajetos individuais de homens e mulheres com alto nível de escolaridade e perfil socioeconômico na cidade de Curitiba. Todos os participantes desempenham atividades profissionais como professores na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). A amostra foi composta por 10 participantes, distribuídos de forma proporcional entre os gêneros. A coleta de dados foi realizada ao longo de 15 dias consecutivos. Os trajetos foram registrados utilizando dispositivos celulares equipados com GPS, nos quais os participantes registraram o início e o término de seus deslocamentos, bem como o modal de transporte utilizado. As atividades realizadas pelos participantes foram classificadas em três categorias: lazer, família e amigos; atividades funcionais, domésticas e de serviços; e atividades profissionais e de estudos. O modal de transporte utilizado podia ser classificado em: a pé/bicicleta; carro; e transporte coletivo.
Os dados foram analisados empregando técnicas de análise espacial, visando identificar possíveis padrões presentes nos trajetos registrados. Pelo número de viagens em relação ao modal de transporte (Gráfico 01) foi possível notar que tanto os homens quanto as mulheres da amostra utilizam mais o carro para realizar seus deslocamentos diários. Resultado já esperado, pois o uso do carro e do transporte individual está relacionado à conveniência, flexibilidade de horários e sentimento de segurança, principalmente em se tratando de mulheres (CAVALCANTE, 2016; MAOSKI, 2014). Foi possível notar também que as mulheres da nossa amostra andam mais a pé do que os homens e utilizam menos o transporte coletivo.
Em relação a quilometragem percorrida para realizar as atividades (Gráfico 02) constatou-se que embora percorram maiores distâncias e realizem mais trajetos destinados às atividades de lazer, visita à família e amigos e atividades funcionais, domésticas e de serviço, as mulheres da amostra fazem trajetos mais curtos do que os homens para as atividades profissionais. Através do mapeamento evidenciou-se que os trajetos das mulheres estão concentrados na parte central da cidade, onde os serviços e comércio se acumulam.
Quanto ao número de viagens em relação às atividades (Gráfico 03), para ambos os gêneros houve predomínio das atividades profissionais e de estudos. Porém, as mulheres possuem maior número de trajetos para realizar atividades de lazer, visita à família e amigos e atividades funcionais, domésticas e de serviço. Estes resultados corroboram com as discussões que apontam o fato de o homem possuir uma mobilidade pendular (casa - trabalho - casa) enquanto a das mulheres tende a ser mais dispersa, pois as responsabilidades da reprodução da vida e de atividades do cuidado recaem sobre as elas majoritariamente (PEREZ, 2019; MADARIAGA, 2010, 2013). Com esse estudo demonstramos que o fato independe da camada social.
A fim de explorar se as atividades relacionadas aos cuidados com filhos e familiares influenciavam de maneira significativa a mobilidade dos participantes, os quatro indivíduos (duas mulheres e dois homens) que não têm filhos foram eliminados da amostra (Gráfico 04). Foi possível constatar que as diferenças quanto aos motivos dos trajetos ficam mais acentuados. Os homens com filhos realizaram mais trajetos para fins de atividades profissionais e de estudo, enquanto as mulheres com filhos fazem mais trajetos para fins de atividades de lazer, visita à família e amigos e atividades funcionais, domésticas e de serviço.
Apesar da amostra reduzida, a análise dos trajetos de homens e mulheres com alto nível socioeconômico e educacional revelou diferenças significativas nos padrões de mobilidade com base no gênero. Esses resultados reforçam as teorias feministas que enfatizam o acúmulo de responsabilidades profissionais, domésticas e de cuidados enfrentadas diariamente pelas mulheres e que tal fato independe da posição social. As descobertas do artigo contradizem estudos anteriores que sugerem que homens e mulheres de níveis socioeconômicos mais elevados tendem a ter padrões de deslocamento menos discrepantes entre si.
Referências
CAVALCANTE, S. O significado do carro e a mobilidade cotidiana. Revista Subjetividades, v. 12, n. 1-2, p. 359-388, 2012.
COL·LECTIU PUNT 6. Urbanismo feminista: Por una transformación radical de los espacios de vida. Barcelona: Virus Editorial i distribüidora, 2019.
FENSTER, T. The right to the gendered city: Different formations of belonging in everyday life. Journal of Gender Studies, v. 14, n. 3, p. 217–231, nov. 2005.
FENSTER, T. El derecho de uso de la ciudad basado en el género: Lo privado y lo público en la teoría de Lefebvre. Em: Antología de pensamientos feministas para arquitectura. Barcelona: Oficina de Publicacions Acadèmiques Digitals de la UPC, 2022. p. 85–94.
LOUKAITOU-SIDERIS, A. A gendered view of mobility and transport: Next steps and future directions. Town Planning Review, v. 87, n. 5, p. 547–565, 1 set. 2016.
MAOSKI, F. Ter um carro é....A percepção sobre o significado do carro e o comportamento do condutor. Dissertação—Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2014.
MUXI, Z. M. Ciudad próxima. Urbanismo sin género. Em: Antología de pensamientos feministas para arquitectura. Barcelona: Oficina de Publicacions Acadèmiques Digitals de la UPC, 2022. p. 305–316.
PEREZ, C. C. Invisible women: Data bias in a world designed for men. New York: Abram Press, 2019.
MADARIAGA, I. S. Housing, mobility and planning for equality in diversity: Cities, gender and dependence. Em: VVAA Social housing and city. Madri: Ministerio de Vivienda, 2010. p. 177–197.
MADARIAGA, I. S. Mobility of Care: Introducing New Concepts in Urban Transport. Em: MADARIAGA, I. S.; ROBERTS, M. (Eds.). Fair Shared Cities: The Impact of Gender Planning in Europe. 1a ed. Routledge, 2013.
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