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Foto do escritorKátia Oliveira

Leis, planos e projetos em Barcelona - a perspectiva de gênero incorporada na vida cotidiana


La Borda habitatge cooperatiu. Rua Constitució 85-89, Barcelona. Autoria: Lacol - Cooperativa de arquitectos.



Zaida Muxi-Martínez, doutora arquiteta, professora e pesquisadora da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAB/UPC) e integrante do Col.lectiu Punt 6 (Coletivo Ponto 6), publicou em 2020, um artigo que coloca foco sobre as experiências de aplicação da perspectiva de gênero no planejamento e nos projetos urbanos nas escalas regional e municipal da região da Catalunha, na Espanha. Em seu artigo intitulado Aplicación de la perspectiva de género al urbanismo y la arquitectura. Experiencias a escala regional y municipal en Cataluña, a autora faz uma revisão sobre leis, ações e eventos que buscaram incorporar a perspectiva de gênero na vida cotidiana das cidades catalãs. Apresenta um recorrido pelo processo que envolveu a participação de agentes públicos (técnicos e políticos), representantes das associações de vizinhos e grupos de profissionais feministas, culminando com a apresentação de experiências concretas que repercutiram positivamente pela ação, formação e difusão que geraram. Colocando foco naquelas que ocorreram no período de 2015 à 2019, especialmente em Barcelona e em algumas outras cidades espanholas.


Uma importante referência para o avanço das ações de inclusão das demandas de gênero em programas e projetos públicos em cidades espanholas, é a Lei 2/2004, de 4 de junio, Llei de millora de barris, àrees urbanes i viles que requereixen una atenció especial (Lei de melhora dos bairros, áreas urbanas e cidades que requerem atenção especial), da região da Catalunha. A chamada Llei de Barris (Lei de Bairros) foi a primeira normativa no âmbito urbanístico da Espanha que introduziu o gênero como parâmetro de planejamento urbano. Uma normativa cujas ações propostas, receberam financiamento de 50% do governo regional e 50% dos municípios e onde foram definidos três tipos de tecidos urbanos como prioritários para projetos e investimentos: cascos históricos, conjuntos residenciais e bairros autoproduzidos.


A Lei 2/2004 exigia que os projetos municipais devessem abordar 8 critérios obrigatórios, sendo o “Ponto 6”, o critério relativo à equidade de gênero no uso dos espaços públicos e equipamentos. A criação desse importante marco legal ocorreu justamente quando houve a eleição de um governo de esquerda na Catalunha, entre 2003 e 2006. Nesse momento, o Institut Català de les Dones – ICD (Instituto Catalão de Mulheres), organismo da administração regional, passará a ter uma relação mais orgânica e direta com a presidência da Generalitat (governo regional). O ICD foi criado em 1989, com os objetivos de elaborar e executar os projetos e propostas relativas à promoção da mulher e fazer efetivo o princípio da igualdade de gênero.


Segundo Zaida Muxi, a Lei de Bairros é a raiz para que muitos governos municipais começassem a implementar a perspectiva de gênero no planejamento e nos projetos urbanos na Espanha. Enquanto o ICD (Instituto Catalão de Mulheres), foi responsável por permear transversalmente todas as políticas na região e também gerar a produção de conhecimento e formação sobre a temática, especialmente dirigidas aos técnicos dos municípios. Como forma de conhecer a realidade vivida por aquelas que melhor conhecem os problemas de seu bairro, foram realizados também cursos de formação de curta duração para as mulheres participantes das associações de vizinhos do território catalão, a fim de aproximá-las de conhecimentos mais técnicos sobre urbanismo e desvelar o conhecimento resultante de suas experiências práticas cotidianas.


É nesse contexto que surge a cooperativa de arquitetas, urbanistas e sociólogas, Col.lectiu Punt 6 (Coletivo Ponto 6), com a determinação de facilitar oficinas, desenhar guias, ensinar, realizar pesquisas, consultorias de planejamento urbano, auditorias, projetos e ações com um objetivo comum: tornar as cidades mais inclusivas e as pessoas que as habitam, especialistas nos espaços que as rodeiam. Por conta dessas importantes leis e ações, o coletivo que, desde 2005, trabalha o urbanismo feminista aplicando a perspectiva de gênero e interseccional, viu aumentar a demanda por colaboração e realização de trabalhos assim como um crescimento exponencial do interesse por cursos de formação na área, sobretudo entre os anos de 2015 e 2019. Isso se deveu em parte, devido ao apoio explícito de prefeitas de vários municípios às políticas feministas. Cidades importantes como Madri com Manuela Carmena, gestionou “por uma cidade das pessoas”, enquanto Barcelona com Ada Colau, “por uma cidade feminista e cuidadora”. Alcaldesas (prefeitas) feministas, que proporcionaram que os espaços de relevância política em seus governos fossem dirigidos por mulheres feministas.


Uma das forças que sustenta o processo de participação cidadã no planejamento da cidade vem das associações de vizinhos, consideradas pela autora um primeiro espaço democrático de pensamento urbano na Espanha. Foram legalizadas na última década da ditadura de Francisco Franco (1939 – 1975), através da Ley de las Asociaciones de 1964. Estas associações contaram e seguem contando majoritariamente com as vozes de mulheres para reclamar por melhorias urbanas, serviços, equipamentos e espaços públicos para viabilizar a vida cotidiana em seus bairros. Assumir esse papel de reclamar por melhorias nas condições da vida cotidiana pelas mulheres é consequência da divisão social do trabalho baseada nas questões de gênero. Como as mulheres, em sua grande maioria, são as que se encarregam das atividades reprodutivas e de cuidados, apresentam um conhecimento amplo das necessidades urbanas.


Nos anos seguintes à aprovação da Lei de Bairros, a aposta de introduzir o gênero em outras leis de alcance regional ligadas ao meio ambiente construído na Catalunha, foi resultado do trabalho conjunto do ICD e do Departamento de Política Territorial e Obras Públicas da Generalitat (governo regional). O desenvolvimento transversal da política voltada para as questões de gênero na região foi reflexo do Plan de acción y desarrollo de las políticas de las mujeres en Cataluña (Plano de ação e desenvolvimento de políticas para mulheres na Catalunha), entre 2005 e 2007 e do Plan de políticas de mujeres del Gobierno de la Generalitat de Cataluña (Plano de política das mulheres do Governo da Generalitat de Catalunya), entre 2007 e 2011.


Outro importante marco legal, que introduziu critérios de gênero sobre o ambiente construído, dessa vez na escala doméstica, foi a Lei 18/2007, de 28 de dezembro, Del dret a l’habitatge (Do direito à moradia). Em seu artigo 23, sobre os requisitos exigíveis, estabelece que nos processos de edificação, conservação e reabilitação devem ser fixados critérios de gênero, através de novos tipos de habitação que tenham em conta os diferentes modelos de convivência, assim como a necessidade de grupos específicos. O item “d” do referido artigo 23, explica que a inovação na concepção e desenho deve permitir a acessibilidade no uso de elementos para facilitar o trabalho doméstico e para adequar-se aos novos papéis de gênero, contemplando transformações no interior das habitações para adaptá-las às variações de estruturas familiares.


Em Barcelona, a partir do Conselho de Habitação, se promoveu a produção de uma nova tipologia de habitação coletiva pública, denominada co-habitação (co-habitatge ou co-vivienda) ou habitação cooperativa em cessão de uso. Esse foi um projeto proposto por grupos cooperativos organizados pelo direito à moradia, que há algum tempo já trabalhavam no desenvolvimento da proposta. O projeto da Cooperativa La Borda, em Can Batlló, surgiu com a ideia de reabilitar um antigo galpão industrial, produzindo habitação coletiva com usos e espaços compartilhados. O projeto da Rua Princesa propôs a reabilitação de um edifício de propriedade do município para convertê-lo em seis unidades habitacionais para atender a demanda da Cooperativa Sostre Cívic. Entre 2015 e 2019 se estabeleceram regras e leis que tornaram possível a construção do sistema habitacional cooperativo de posse coletiva em cessão de uso, cujos projetos privilegiam espaços compartilhados que colocam os cuidados no centro, promovendo maior socialização e acompanhamento de pessoas dependentes e tornando mais leve a carga derivada das atividades domésticas.


Todos os esforços, marcos legais e projetos executados vêm produzindo seus frutos, pouco a pouco. Na atualidade, são requeridas pessoas especialistas em gênero em concursos de grandes projetos urbanos, assim como a redação e revisão de estudos que abordam a perspectiva de gênero no urbanismo e na arquitetura na Catalunha. Muxi salienta que já levam décadas no contexto da Catalunha as lutas feministas por cidades mais justas e inclusivas, que tenham em conta as tarefas de reprodução e dos cuidados da vida no centro do pensamento e processo de planejamento e projeto. De uma etapa normativa regional, muitas cidades como Barcelona, passaram para ações concretas que obtiveram financiamento através da Lei de Bairros. As ações concretas nas cidades, o trabalho de formação de técnicos municipais e de mulheres ativistas nas associações de vizinhos, a introdução do tema de gênero nas atividades e estudos de pós graduação na Universidade Politécnica da Catalunha (UPC), a criação do Col.lectiu Punt 6 (Coletivo Ponto 6) e de outras cooperativas de arquitetos especializados no tema e a difusão dos conhecimentos gerados nesse processo, ampliaram sua repercussão e provaram que cidades mais justas, menos violentas e sustentáveis devem incluir em seu planejamento a perspectiva de gênero.


Esta revisão da experiência espanhola, foca principalmente em Barcelona e demonstra todos os avanços na incorporação da perspectiva de gênero e dos princípios e práticas do urbanismo feminista em outras cidades da Catalunha e, mesmo que ainda não esteja ao alcance da maioria das pessoas, sua implementação não causa mais estranheza e é cada vez mais compreendida e difundida. As estratégias para a implementação de políticas de gênero e feministas do governo da cidade de Barcelona foram feitas de maneira integrada e em diferentes escalas, a partir de normas que incorporaram a participação cidadã com perspectiva de gênero. Ao mesmo tempo, em outros âmbitos, como na cultura ou nos eventos de representação política, se buscou a paridade de representação, dando maior protagonismo às mulheres para compensar todos os anos de invisibilidade de suas contribuições. Por outro lado, a autora avalia que falta uma maior incidência sobre a formação universitária, onde a perspectiva de gênero ainda não foi incorporada de maneira integrada e transversal nos currículos.


A fim de facilitar a compreensão da evolução dos diferentes marcos legais que buscaram incorporar a perspectiva de gênero e a diversidade na vida cotidiana das cidades catalãs, segue a lista das principais leis e planos apresentados no artigo. Construir uma base de marcos legais e experiências exitosas nas escalas dos espaços da cidade e também da unidade habitacional, é fundamental para subsidiar a luta feminista por cidades que coloquem o trabalho reprodutivo e de cuidados com a vida como centrais na elaboração de políticas públicas de planejamento urbano e de produção de moradia.


Leis e Planos


1964 - Ley de las Asociaciones - primeiro espaço democrático de pensamento urbano na Espanha. Regularizadas no período da Ditadura de Francisco Franco (1939 – 1975).


2004 - Ley 2/2004 - Llei de millora de barris, àrees urbanes i viles que requereixen una atenció especial - Llei de Barris - (Lei de melhora dos bairros, áreas urbanas e cidades que requerem atenção especial) - é a precursora em incorporar a perspectiva de gênero - os projetos municipais devem abordar 8 critérios obrigatórios - o “Ponto 6” relativo à equidade de gênero no uso dos espaços públicos e equipamentos.


2005/2007 - Plan de acción y desarrollo de las políticas de las mujeres en Cataluña.


2007/2011 - Plan de políticas de mujeres del Gobierno de la Generalitat de Cataluña.


2007 - Ley 18/2007, Del dret a l’habitatge (Do direito à moradia) - artigo 23 – fixar critérios de gênero nos processos de edificação, conservação e reabilitação - novos tipos de habitação para diferentes modelos de convivência e grupos específicos. Facilitar o trabalho doméstico e adequar-se aos novos papéis de gênero, transformando o desenho do interior das habitações para adaptá-las às variações de estruturas familiares.


2015 - Llei 17/2015, D’igualtat efectiva de dones i homes (Da igualdade efetiva de mulheres e homens) - incorpora a perspectiva de gênero no urbanismo e estabelece que todas as políticas de planejamento urbano, habitação, mobilidade e sustentabilidade incluam a perspectiva de gênero em todas as suas fases, do diagnóstico à avaliação.


2016 - Ley 4/2016 - Ley de mesures de protecció del dret al’habitatge de les persones en risc d’exclusió residencial (Lei de medidas de proteção ao direito de moradia das pessoas em risco de exclusão residencial).


2016-2020 - Plan por el derecho a la vivienda de Barcelona. Específicamente no Artigo 8, letra” f “ se estabelece: “Aplicar la perspectiva de género y incorporar la perspectiva de las mujeres en todos los niveles y en todas las etapas de las actuaciones que se lleven a término para proteger el derecho a la vivienda de las personas que se encuentran en situación de exclusión residencial o que estén en riesgo de encontrarse”.


2016-2020 - Plan de la Justicia de Género (Barcelona), requer a incorporação da perspectiva feminista em todas as políticas municipais, incluindo planejamento, urbanismo e segurança. Estruturado em quatro eixos: 1) mudanças institucionais; 2) economia da vida e organização do tempo; 3) a cidade dos direitos; 4) bairros habitáveis e inclusivos. Marco para o desenvolvimento de posteriores normas políticas e projetos que se aprovaram e desenvolveram na cidade, como a medida de governo “Urbanismo com perspectiva de gênero. O urbanismo da vida cotidiana”.


2018 - Concurso BCN-NYC - Desafio de habitação a preços acessíveis – buscar tecnologias e ferramentas inovadoras que diminuíssem o tempo e os custos de construção e a reabilitação de zonas urbanas densas com a finalidade de fazer habitação mais acessível para todas as pessoas.


2016-2025 - Plan por el derecho a la vivienda en Barcelona. Ampliar o parque de habitação social acessível; diversificar os sistemas de obtenção e arrendamento; incorporar a habitação cooperativa em cessão de uso; fazer novas moradias e comprar edifícios para retirá-los do mercado especulativo que expulsa a cidadania; formar o pessoal técnico dos escritórios de habitação; incluir critérios de gênero nos projetos nas diferentes escalas; projetar novos modelos de habitação social; incluir tipologias flexíveis e diversificadas para garantir a adaptação ao longo do ciclo de vida e para os diferentes perfis; incluir espaços de vida comunitária, brincadeiras infantis, espaços iluminados e seguros; conceder moradia, levando em consideração a especial vulnerabilidade das mulheres, especialmente entre idosas e jovens.


Pla de Joc a l’espai públic amb l’objectiu 2030, se realizou sobre a pergunta: O que oferece a cidade e o entorno urbano para pessoas de diferentes idades e, especialmente, para a infância? Os espaços de jogos infantis como elementos estruturadores urbanos atuais e futuros. Uma cidade amiga da infância põe desde o urbanismo o foco e a ação na criação de entornos seguros e inclusivos.


Imagem: La Borda habitatge cooperatiu. Rua Constitució 85-89, Barcelona. Autoria: Lacol - Cooperativa de arquitectos. Fonte: http://www.lacol.coop/projectes/laborda/


Referências:


MUXI MARTÍNEZ, Zaida. Aplicación de la perspectiva de género al urbanismo y la arquitectura. Experiencias a escala regional y municipal en Cataluña. Revista Ciudad y Territorio - Estudios Territoriales. Vol. LII, nº 203. Ministerio de Transportes, Movilidad y Agenda Urbana. Madri: Secretaría General Técnica. Centro de Publicaciones, 2020.


La Borda: Visita arquitetônica


Princesa 49 - primeira iniciativa de cooperativa habitacional de Barcelona.


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1 Comment


Rafael Bosa
Rafael Bosa
May 19, 2021

Como é bom ver pensamentos se tornarem projetos! 🌻 É possível mudar o mundo.

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