Fonte: Autora
O uso do espaço público por mulheres é frequentemente limitado por uma série de restrições espaço-temporais, que são intrinsecamente ligadas às responsabilidades de gênero e à estrutura social. Estas restrições impactam significativamente a mobilidade, as oportunidades e a liberdade das mulheres no contexto urbano, revelando uma desigualdade persistente entre os gêneros.
A geografia espaço-temporal, uma abordagem da geografia humana, permite entender como as atividades e os movimentos dos indivíduos são moldados por fatores temporais e espaciais. Esta abordagem busca mapear e quantificar o comportamento humano através da mensuração do tempo. Considera que todos os indivíduos ocupam apenas um local por vez e têm a mesma quantidade de tempo diário, mas as decisões sobre como e onde usar esse tempo são frequentemente limitadas por restrições impostas por fatores externos. O tempo é usado por completo continuamente, sem a possibilidade de acúmulo, dessa forma, o fluxo de tempo possui um ritmo constante e fixo e que as decisões tomadas por um indivíduo ao longo da vida em relação ao espaço ocupado por seu corpo podem ser mensuradas através do tempo. Portanto, as atividades e viagens de uma pessoa durante um determinado intervalo de tempo constituem uma sequência de eventos, um caminho contínuo no espaço e no tempo. Um caminho espaço-temporal representa o caminho percorrido por um indivíduo, mas qualquer caminho é apenas uma das infinitas possibilidades a serem realmente realizadas por uma pessoa (ELLEGÅRD, 1999; HÄGERSTRAND, 1970; SCHWANEN; KWAN; REN, 2008).
O conceito de caminho espaço-temporal foi usado por Hägerstrand (1970, 1985) para referir-se ao percurso que uma pessoa percorre em um dado período, e para demonstrar que esse caminho não é apenas uma escolha individual, mas também um reflexo das restrições que o indivíduo enfrenta. Em outras palavras, um indivíduo não é completamente livre para tomar as decisões sobre suas atividades e viagens diárias. Embora todos tenhamos consciência sobre o tempo, ele é experimentado de maneira diferente por cada indivíduo uma vez que o uso do espaço e do tempo estão condicionados a certas restrições. Existem três principais categorias de restrições que moldam esse caminho:
Restrições de Capacidade: referem-se às limitações físicas e biológicas, como a necessidade de dormir, comer, e o fato de que uma pessoa só pode estar em um lugar por vez. Quanto a esse último exemplo há discussões sobre a possibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo devido ao advento da internet.
Restrições de Acoplamento: referem-se à necessidade de estar em um lugar específico para realizar uma atividade em interação com outras pessoa, como estar em um local de trabalho ou utilizar transporte público.
Restrições de Autoridade/Direção: referem-se às limitações impostas por regras, leis ou normas sociais, que limitam o acesso a certos espaços ou a realização de atividades em determinados horários.
As oportunidades disponíveis para um indivíduo realizar suas atividades e viagens são limitadas por restrições que resultam de decisões anteriores, pautadas em obrigações sociais, estruturas organizacionais, disponibilidade de recursos, localização, entre outras. Deste modo, as restrições apontadas não dependem apenas do tipo de atividade, mas também de quando, onde, por quanto tempo, com quem uma atividade é conduzida, bem como o histórico da pessoa que inicia a atividade (ELLEGÅRD, 1999, 2019).
Kwan (1999a, 1999b, 2000) defende que essas restrições são vividas de maneira diferente por homens e mulheres, devido às responsabilidades sociais impostas pelo gênero. Na prática, as mulheres experimentam restrições espaço-temporais mais intensas do que os homens, devido às responsabilidades domésticas e de cuidado que são culturalmente atribuídas a elas. Essas responsabilidades fragmentam o caminho espaço-temporal das mulheres, reduz o acesso a oportunidades em várias esferas, como de emprego, de lazer, de mobilidade, e continuamente impõe níveis significativos de estresse mental quando realizam atividades e viagens no espaço urbano (HANSON; HANSON, 1980; MONK; HANSON, 1982). Por exemplo, mulheres, especialmente aquelas com filhos pequenos, muitas vezes escolhem empregos de meio período ou mais próximos de casa para conciliar as responsabilidades do trabalho remunerado e do trabalho de cuidado. Essa escolha, no entanto, pode resultar em menor autonomia financeira e, portanto, restrições espaço-temporais ainda mais rígidas – afetando ainda a escolha do local de moradia, e do tipo de modal de transporte utilizado (HANSON; PRATT, 1995; KERN, 2021).
A mobilidade é um fator crucial que afeta o acesso a oportunidades físicas, econômicas e sociais. No entanto, tanto historicamente quanto no presente, grupos sociais distintos desfrutam de níveis desiguais de mobilidade (JIRÓN; CARRASCO; REBOLLEDO, 2020; JIRÓN; GÓMEZ, 2018) As mulheres, especialmente as de classes sociais mais baixas, tendem a ter menos acesso a meios de transporte motorizados, como carros, e dependem mais do transporte público, segundo Loukaitou-Sideris (2016). Esta dependência não só limita a autonomia delas como também as expõe a mais restrições espaço-temporais, dado que o transporte público nem sempre oferece as mesmas garantias de segurança e eficiência.
Outra restrição espaço-temporal apontada pela literatura, que está atrelada à mobilidade e às estruturas de poder socialmente impostas, é o medo e a ansiedade experienciada pelas mulheres no espaço público (LEÃO, 2022; SCHWANEN; KWAN; REN, 2008). O medo de violência sexual, uma realidade que afeta desproporcionalmente pessoas que se identificam como mulheres, também impõe uma restrição significativa ao uso do espaço público. Segundo Kern (2021), o medo que as mulheres têm de sofrer violência sexual assume uma lógica geográfica, uma vez que homens como um grupo não podem ser evitados, fazendo com que este sentimento de ameaça constante seja redirecionado ao espaço urbano. Este medo é exacerbado durante a noite, levando muitas mulheres a evitarem sair ou a escolherem rotas e meios de transporte considerados mais seguros, mas nem sempre mais eficientes (KOSKELA, 1999). Este comportamento de "autoproteção" pode reduzir ainda mais as oportunidades de emprego, educação e lazer, limitando o acesso das mulheres ao espaço urbano em comparação aos homens.
O espaço urbano é produzido pelas relações de gênero e reproduzido nas práticas cotidianas em que as mulheres não têm, ou não ousam ter, escolha sobre seu próprio comportamento espacial. O espaço urbano, tal como está estruturado, reflete e perpetua as desigualdades de gênero, e as restrições espaço-temporais são uma manifestação dessas desigualdades, limitando a liberdade e as oportunidades das mulheres em relação aos homens. Compreender essas restrições é fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas que visem reduzir desigualdades. Incorporar uma perspectiva espaço-temporal na formulação de políticas pode minimizar as restrições de oportunidades e possibilidades na vida cotidiana das pessoas, em especial na vida das mulheres.
Referências
ELLEGÅRD, K. A time-geographical approach to the study of everyday life of individuals: A challenge of complexity. GeoJournal, v. 48, p. 167–175, 1999.
ELLEGÅRD, K. Thinking time geography: Concepts, methods and applications. Oxon: Routledge, 2019.
HÄGERSTRAND, T. What about people in regional science? Regional Science Association Papers, 1970.
HÄGERSTRAND, T. Time-geography: Focus on the corporeality of man, society, and environment. Em: Science and Praxis of Complexity. Tokyo: United Nations University, 1985.
HANSON, S.; HANSON, P. Gender and urban activity patterns in Uppsala, Sweden. Geographical Review, v. 70, n. 3, p. 291–299, jul. 1980.
HANSON, S.; PRATT, G. Gender, work and space. 1. ed. [s.l.] Routledge, 1995.
JIRÓN, P.; CARRASCO, J. A.; REBOLLEDO, M. Observing gendered interdependent mobility barriers using an ethnographic and time use approach. Transportation Research Part A: Policy and Practice, v. 140, p. 204–214, 1 out. 2020.
JIRÓN, P.; GÓMEZ, J. Interdependencia, cuidado y género desde las estrategias de movilidad en la ciudad de Santiago. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 30, n. 2, p. 55–72, 2018.
KERN, L. Cidade feminista: A luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.
KOSKELA, H. “Gendered exclusions”: Women’s fear of violence and changing relations to space. Geografiska Annaler, v. 81, n. 2, p. 111–124, 1999.
KWAN, M.-P. Gender, the home-work link, and space-time patterns of nonemployment activities. Economic Geography, v. 75, n. 4, p. 370–394, 1999a.
KWAN, M.-P. Gender and Individual access to urban opportunities: A study using space–time measures. Professional Geographer, v. 51, n. 2, p. 210–227, 1999b.
KWAN, M.-P. Gender differences in space-time constraints. v. 32, n. 2, p. 145–156, 2000.
LEÃO, L. “Somos tudo meio neurótica”: Emprego de táticas de autoproteção como mecanismos de resistência urbana nas decisões femininas de mobilidade. Curitiba: PUCPR, 2022.
LOUKAITOU-SIDERIS, A. A gendered view of mobility and transport: Next steps and future directions. Town Planning Review, v. 87, n. 5, p. 547–565, 1 set. 2016.
MONK, J.; HANSON, S. On not excluding half of the human in human geography. Professional Geographer, v. 34, n. 1, p. 11–23, 1982.
SCHWANEN, T.; KWAN, M. P.; REN, F. How fixed is fixed? Gendered rigidity of space-time constraints and geographies of everyday activities. Geoforum, v. 39, n. 6, p. 2109–2121, nov. 2008.
Comments