Esse texto vem com o intuito de aproximar a discussão e trazer a reflexão sobre o contato e a presença da Natureza dentro dos nossos entornos urbanizados, por meio da prática dos ecofeminismos, “um pensamento e um movimento diferentes das formas conhecidas de feminismo” (PULEO, 2019, p.146) que surge do encontro entre feminismo e ecologia.
A prática dos ecofeminismos através da agricultura urbana visibiliza e valoriza a eco e a interdependência, por meio do cuidado da terra, dos recursos naturais, da corresponsabilidade no cuidado dos corpos vulneráveis - inclusão social, hortoterapia, intergeracionalidade, entre outros. Assim como do cuidado do território, espaços urbanos seguros, habitáveis, sustentáveis e integrados ao metabolismo territorial (KOIS; NEREA,2017).
Inicio a discussão através da agricultura urbana, um tipo de inserção urbana que busca estar livre das opressões patriarcais, androcentrismo e da visão que põe o ser humano em posição privilegiada em relação a Natureza, antropocentrismo. Saliento que no texto é utilizada a palavra “Natureza” , em maiúscula, entendendo-a como força auto criadora e entidade viva, se difere de meio ambiente, que se trata de uma disciplina que alimenta uma visão utilitarista do meio natural e coloca o ser humano como centro de referência.
A prática dos ecofeminismos no território urbano contribui para a aproximação das pessoas com a Natureza nas cidades e a agricultura urbana é uma maneira de viabilizar esses momentos. Os territórios em que nos encontramos são derivados de uma visão urbanocêntrica, em que se incorporam as dicotomias cidade-campo, produção-reprodução, cultura-natureza, público-privado, dentre outras. A agricultura urbana ajuda a questionar essas dicotomias que estão enraizadas nos espaços em que acontece nossa vida cotidiana e onde as relações sociais se desenvolvem de forma desigual. São essas relações que produzem as cidades em que vivemos, reflexo da masculinidade hegemônica e hierárquica e de um modelo de sociedade que vincula qualidade de vida ao consumo e incentiva a produção em favor do acúmulo. São cidades polarizadas socialmente, que resultam pouco saudáveis, concebidas como organismos de crescimento contínuo e ilimitado, levando a uma enorme crise urbana e ecológica.
Esse cenário nos faz ser quem somos. As geografias feministas agregam uma visão de gênero às suas análises geográficas e sustentam que o espaço reproduz relações de gênero e essas relações produzem espaços. Estamos em uma crise multidimensional, na qual o epicentro são as cidades, as opressões e crises se retroalimentam e se expressam como crise social, ecológica e econômica. O planejamento urbano leva essa crise multidimensional tanto aos territórios próximos como também a lugares remotos, onde o modelo urbano e territorial expulsa os espaços e processos agrícolas e naturais para fora das cidades.
Isso nos faz perceber que estamos em uma rede de relações e também interconectadas, ou seja, os impactos da falsa ideia de autonomia das pessoas com a Natureza e entre elas, aliado a forma fragmentada em que as cidades são concebidas, são sentidos em todos os territórios. Neste sentido a agricultura urbana se mostra como uma prática que relaciona a cidade com a agricultura e a comunidade, é um núcleo no qual as pessoas envolvidas participam diretamente de sua gestão e do entorno em que habitam, satisfazem diversas necessidades e faz com que, juntas, as pessoas possam pensar e criar alternativas para suas relações com o território.
Dessa maneira o ecofeminismo, através da agricultura urbana, também se mostra como inovação social, quando busca novas alternativas e propostas para mudar e trazer resoluções, relacionar-se com a natureza e as pessoas, fazer experimentações dentro dos espaços urbanizados. Agustina Alonso e Federico Bizzozero (2018, p.12, tradução minha) apontam que “O pensamento feminista plural e diverso permite problematizar e observar no presente nossos padrões de comportamento, estruturas e vínculos com bagagens histórico-culturais do patriarcado imperante, assim como analisar suas relações.” A agricultura urbana quando comunitária é um espaço onde os ecofeminismos podem colocar em prática a ética do cuidado, ligando a necessidade de produzir subjetividades transformadoras, com a produção de alimentos de forma sustentável.
As hortas comunitárias onde se pratica a agricultura urbana são espaços de ação coletiva, onde se estabelecem vínculos afetivos, simbólicos e estéticos com o espaço, são lugares de transformação ativa. As pessoas produzem seus alimentos procurando o bem-estar de todos os envolvidos com o projeto, fortalecendo o sentido de pertencimento, se comprometem com o cuidado e manutenção do espaço, praticando a corresponsabilidade e aproximação com a Natureza e o cuidado de todas as formas de vida. As hortas comunitárias são ferramentas de integração e apoio social, também de satisfação de necessidades básicas e que empodera as mulheres, incentiva a autonomia e a construção de redes socioeconômicas. Nas cidades a agricultura urbana contribui para a geração de renda, melhora do conforto ambiental, segurança alimentar, segurança do espaço urbano, entre outros.
“Para atravessar esse período crítico melhorando as projeções é necessário nos desafiar com lógicas e enfoques transformadores. Tanto os feminismos como a ecologia e a agroecologia são poderosos exemplos destes enfoques.” (ALONSO; BIZZOZERO, 2018, p. 12, tradução minha). As diversidades culturais e de pensamento, junto aos ecossistemas, são devastados pelo modelo social dominante, os conhecimentos locais ficam invisíveis e o conhecimento científico dominante contribui para criar as condições para esse desaparecimento e alimentar uma monocultura da mente, como diz Vandana Shiva (1993 apud ALONSO; BIZZOZERO, 2018), pois criam um espaço pelo qual desaparecem as alternativas locais.
Distintas autoras ecofeministas vêm manifestando que a depreciação em relação a Natureza é o vetor que une o antropocentrismo, que por sua vez, reforça o etnocentrismo com o androcentrismo ocidental. Isso faz com que as outras culturas e povos que são identificados com a Natureza tenham, por parte da cultura ocidental, sua exploração legitimada. A identificação do feminino com a Natureza e o emocional, em contraposição ao cultural e racional, põe em evidência a falsa legitimidade ocidental, a depreciação em relação a Natureza e de tudo o que se identifica como feminino (GARCÍA ROCES, 2010 apud ALONSO; BIZZOZERO, 2018).
No mesmo sentido, a agroecologia tenta manter a integridade do cuidado da Natureza e das relações sociais, mas não com uma perspectiva de gênero. A agroecologia valoriza a convivência, a cultura, valores de respeito, o cuidado e equilíbrio dos ecossistemas, valores intangíveis que provocam uma racionalidade que não é patriarcal, nem extrativista das relações e do território (ALONSO; BIZZOZERO, 2018).
Compreendendo que a prática da agroecologia destaca uma visão ética de justiça social e ambiental entendendo a gestão da produção, os trabalhos de cuidado, domésticos, o respeito, a igualdade e a garantia de uma vida sem violência, isso também inclui o direito a participação das mulheres na vida social e política. Garantindo o acesso à terra, água, sementes, condições de produção e comercialização com autonomia e liberdade, a perspectiva feminista fortalece os princípios da agroecologia, a equidade, que, da mesma forma que a economia feminista, está baseada na justiça social e igualdade.
Percebe-se que a prática ecofeminista tanto na cidade como no campo é fundamental para pensar uma saída da crise multidimensional em que estamos e um caminho para renaturalizar as cidades. É preciso tratar isso com seriedade, entendendo que as cidades são o epicentro das questões climáticas, centro dos problemas geopolíticos e estão diretamente ligadas às questões de injustiças e desigualdades (LATOUR, 2020). É necessário uma transformação na maneira de pensar cidades, para que contemplem espaços para a agricultura, ócio, a convivência com todos os seres vivos e o reconhecimento dos direitos da Natureza que são de suma importância para garantir a qualidade de vida nestes espaços urbanizados e fazer a transição para cidades sustentáveis. Vemos que os feminismos põem em evidência a multiplicidade e diversidade de visões e percepções de sociedade e mundo, visibilizam o invisível e impõem a práxis da transformação.
As cidadãs das urbes e dos campos possuem conhecimentos riquíssimos e imprescindíveis para os territórios, são especialistas da vida cotidiana, portanto é necessário dar luz a esses saberes e incorporá-los junto a novas propostas e práticas sociais.
Imagem
TransLAB.URB e Raíz Urbana - Oficina Criando Comunidade para a horta link: https://translaburb.cc/Mini-Guia-Horta 2018
Referências
Colectivo de Geografía Crítica del Ecuador (2018) Geografiando para la resistencia. Los feminismos como práctica espacial. Cartilla 3. Quito
Coord. Tendero, Guillem. (2017) La Ciudad Agraria. Agricultura Urbana y Soberanía Alimentaria Madrid: Icaria.
Vídeo Vandana Shiva - Monoculturas da mente
Alonso, Agustina y Bizzozero, Federico. (2018) Naturaleza, Feminismo y Agroecología. Los
necesarios vínculos de lo inminente. Centro Ecológico. [Online] disponível em:
Latour, Bruno. (2020) Diante de Gaia, Oito Conferências sobre a Natureza no Antropoceno. Brasil: Ubu Editora.
Puleo, Alicia (2019) Claves Ecofeministas: Para rebeldes que aman a la Tierra y a los animales. España: Plaza y Valdés.
Yorumlar