“Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e epistemológico binário gritando diante de vocês” (PRECIADO, 2020).
Assim se define, não se definindo, Paul Beatriz Preciado, nascido em 1970, em Burgos, Espanha, filósofo e escritor feminista transgênero, cujas obras versam sobre assuntos teóricos como filosofia de gênero, teoria queer, arquitetura, identidade e pornografia. Sobre sua data de nascimento como Paul, ele diz o seguinte: “[...] a decisão chegou em 16 de novembro de 2016. Meu novo nome foi publicado, como exige a legislação espanhola em vigor, em meio ao nome das crianças nascidas naquele dia na cidade em que tinha nascido havia mais de quarenta anos.” (PRECIADO, 2020, p. 35).
“O que chamamos de subjetividade não é mais que a cicatriz deixada pelo corte na multiplicidade do que poderíamos ter sido”, afirma Preciado. A transexualidade é um processo de experimentação social subjetivo que vai implicar o questionamento de todas as identidades normativas, sejam elas de classe, de raça, de gênero e de sexualidade; a transição é sempre! (Miro Spinelli). Família, escola, hospital e prisão são aparelhos de opressão, são o exoesqueleto que constrói a nossa anatomia política com base na biologia. Não estamos interessados em produzir identidades cristalizadas e normativas e, sim interessad(a, o, e)s em produzir liberdade (Camila Bastos Bacellar). Estas são transcrições do episódio #125 da Rádio Companhia que abordou o livro "Um apartamento em Urano" de Paul Beatriz Preciado e os processos contemporâneos de transformação política, cultural e sexual.
Preciado vem de uma linha teórica que trabalha alguns conceitos de gênero que surgem após a criação da Teoria Queer. Judith Butler vem para aquietar os ânimos da Teoria Queer: "Vamos fundamentar isso em um terreno mais solidificado, criar uma teoria crítica muito bem fundamentada para discutirmos isso.” Butler trabalha esse tema em várias de suas obras. Em ‘Problema de gênero’, Butler ainda desperta algumas questões alvos de críticas, que ela procura discutir em obras posteriores como ‘Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”’.
A partir dessa produção teórica e através de sua perspectiva de vida, Preciado procura compreender o sistema onde se insere, o que pretende passar enquanto teórico e ‘formulador de teorias’ com sua produção. No Testo yonki ou junkie ele mostra e descreve como foi o processo de transição dele, e como consegue assumir uma perspectiva sobre a transição em contato com um sistema disciplinar e normativo que dita o que é ser trans, pois sempre se pensa trans como uma entidade abjeta, que o estado exclui e não quer saber.
Preciado diz que podemos pensar e falar de pessoas trans dentro do Estado, podemos pensar tudo dentro do Estado, mas esse ‘tudo’ que pensamos, devemos pensar enquanto entidade abstrata que precisa ser encaixado no sistema de inteligibilidade que o Estado nos ‘presenteia’. Temos que encaixar isso no fluxo do capitalismo, aí consegue-se tornar inteligível, pois ainda se consegue continuar explorando a força de trabalho dessas pessoas.
No seu processo de transição, Preciado consegue perceber e decodificar o processo, pensando na perspectiva de que a pessoa trans pode ser ‘aceita’. Mas para que seja ‘aceita’ e consiga ter possibilidade de ‘fala’ é preciso que essa pessoa trans se adeque a certos códigos estéticos (questão chave da sua teoria). Nesse ponto entram seus novos termos ou ‘neolinguística’, para nomear estes processos e códigos, tais como: farmacopornográfica, sexopolítica, tecnogênero, contrassexual, dildotectônica, somatecnopolítico, potentia gaudendi/força orgásmica, sexocêntrico, pirata-do-sexo ou hacker-sexual.
Existem alguns códigos, significantes e condições estéticas, que estabelecem padrões de gênero na sociedade. Você só reconhece a outra pessoa como ser humano quando você olha no rosto dela e nele procura traços e códigos que a identifiquem como ‘isso’ ou ‘aquilo’, ‘homem’ ou ‘mulher’. Preciado diz que só conseguimos reconhecer algumas pessoas quando tratamos do campo de gênero através de certos códigos.
Por que o processo de transição está ligado e é controlado pelo Estado? Através da teoria das tecnologias de gênero da Teresa de Lauretis, mais os conceitos de gênero da Judith Butler, e a psicanálise, Preciado formula sua resposta.
Só conseguimos traçar perspectivas, fazer algumas coisas dentro de certos regimes de poder. Assim, ele só conseguiria ser trans e reconhecido enquanto homem quando ele completasse o processo de adequação de gênero através de uma equação estética dominante. Ou seja, não basta você se reconhecer como homem ou mulher, você tem que se parecer (esteticamente com um homem ou uma mulher). O que é um homem? O que é ser um homem para o Estado? Para responder estas questões ele descreve como o ‘homem’ e a ‘mulher’ foram construídos (fazendo o recorte territorial) na realidade ocidental e capitalista.
Existe um problema central nessas redes de dicotomia que fundamentam todo o processo de pensamento ocidental. Só conseguimos pensar algumas coisas opondo elas a outras. Homem em oposição a mulher, escuro em oposição ao claro, tristeza em oposição a alegria (esquema fundamental do estruturalismo: na concepção estruturalista todas as coisas e regimes simbólicos do mundo se orientam em pares opostos entre si).
A problemática de Preciado se estabelece numa oposição fundamental que tem ganhado protagonismo nas discussões sobre pessoas trans, em um regime hierárquico de diferenciação (cis e trans). Isso se fundamenta através de uma argumentação transfóbica de que algumas coisas são naturais (ele/ ela nasceu assim cis e se reconhece assim). Já as pessoas trans precisam usufruir de meios artificiais e mundanos criados pelo homem para se reconhecer, se adequar por meio de procedimentos estéticos e tecnologias para que seu corpo possa atingir essa expectativa que foi ‘criada’.
Em seu estudo genealógico do processo de construção da masculinidade e feminilidade no ocidente, ele percebe que ambos também estão ligados a processos artificiais e tecnológicos. Estudos sobre a pílula anticoncepcional, listas de biocódigos da masculinidade e da feminilidade, o papel do cinema, o papel da mídia sobre o saberpoder da imagem de um ‘homem’ e de uma ‘mulher’, o que se precisa ser, dão base a seus estudos e afirmações (Figura 1).
Revistas femininas ensinam a ser mulher (dóceis, carinhosas, prontas para servir e maquiadas...). O homem deve cumprir a expectativa de virilidade, ter família, ter filhos, ser provedor (Figura 2). A ideia de família recai sobre os papéis de masculinidade e feminilidade. O que para o ocidente parece plenamente ‘normal’.
Porém, quando as pessoas cis não se parecem com estes ideais, para que possam representar (performar) na sociedade e parecer ‘homem’ e ‘mulher’, é nos procedimentos artificiais que encontram a solução. Preciado afirma: “No contexto de um modelo sexopolítico farmacopornográfico de rápida expansão em que um grande número de potenciais consumidores vê cada vez mais o acesso a produção molecular do seu gênero e da sua sexualidade moduladas pelas flutuações do mercado farmacêutico, implantes e micropílulas anunciam um novo tipo de heterossexualidade de alta tecnologia que difere radicalmente da heterossexualidade vitoriana do século XIX.
Com a fundamentação teórica em Deleuze (anti-Édipo), Preciado consegue traçar o estudo de como as pessoas conseguiam adentrar fluxos de inteligibilidade através do capitalismo no decorrer da história. “Esses são só alguns indicadores do surgimento de um regime pós-industrial, global e midiático que a partir de agora chamarei farmacopornografico. O termo se refere aos processos do governo biomolecular (fármaco-) e semiótico-técnico (pornô) da subjetividade sexual, dos quais a Pílula e a Playboy são dois resultados paradigmáticos.” (PRECIADO, 2018, p. 36) (Figura 3).
Na era vitoriana, a cientificação (quando está nascendo e sendo produzida), estava centrada em estudar a anatomia dos corpos (do homem e da mulher) e procurava diferenciá-los. Já no capitalismo farmacopornográfico a indústria pornográfica age como uma tecnologia de criar e consumir gênero (aprender a ter relações sexuais através do consumo dessas mídias) que constrói o saberpoder do sexo atualmente. A indústria farmacêutica traz a condição bioquímica comprável e comercializável para que você possa virar um ciborgue (Donna Haraway). Então você pode aprender e comprar próteses para adentrar nessa heterossexualidade de alta performance: Se você não é viril, compre uma pílula azulzinha. Não parece jovem? Usa esse dermocosmético aqui. Parece fraco? Toma whey protein, faz crossfit. Cabelo está caindo? Passa minoxidil, faz reposição hormonal.
As opções são variadas: colocar silicone, tomar um medicamento para fins estéticos, fazer harmonização facial. Cada dia mais mulher, cada dia mais homem. Estes significantes tornaram-se comercializáveis na era farmacopornográfica e são todos os dias atualizados pela mídia, cinema e redes sociais. O capitalismo consegue interpretar esses significantes e biocódigos de gênero, e traduzi-los em mercadorias. Um ciclo eterno entre aqueles que criam expectativas de gênero e aqueles que podem comprar.
Uma tecnobarbie eternamente jovem e supersexualizada, quase completamente infértil e sem menstruar, mas sempre pronta para inseminação artificial e barriga de aluguel. Acompanhada de um supermacho estéril cujas ereções são tecnicamente produzidas por uma combinação de viagra e códigos pornográficos emitidos por meio de canais digitais audiovisuais computadorizados. Finalmente a fertilização heterossexual farmacopornográfica está acontecendo in vitro!
O que diferencia a cisexualidade da transexualidade? Para Judith Butler, sexo é uma categoria construída em gênero, tudo que conseguimos construir como significante de gênero é forte e repetitivo. Preciado critica o aspecto material de como isso é construído no dia a dia, apontando os biocódigos da masculinidade e feminilidade (peito musculoso, cabelo brilhoso, barba perfeita). Para uma pessoa conseguir se afirmar em uma categoria de gênero ela precisa reforçar esses biocódigos criados pela cisgeneridade. E os transexuais recorrem a este mesmo processo para se ‘readequar’.
Surge então outra questão, segundo Preciado, até quando a transexualidade e a homossexualidade se mantem como categoria subversiva? Já que essas condições estão dentro de um fluxo tecnológico do capital que o Estado administra (acompanhamento médico para afastar os corpos abjetos e híbridos) a fim de que esse regime ontológico e dicotômico não se rompa.
As pautas identitárias tem evoluído no mundo, mas só para aqueles que atendem às expectativas estéticas dominantes a requisitos socialmente aceitos: casar, ter filhos, ter um emprego. Você até pode ser LGBTQIAPN+, mas você precisa se fazer respeitável para se manter representável, aceito e fazer parte da estrutura do capitalismo, ou seja, uma paródia da heterossexualidade. A única força que movimenta a representação é o capital!
Muitas pessoas não sabiam o que era uma drag queen, até verem uma em comerciais vendendo produtos. Então tem homens que se vestem de mulheres que não querem ser mulheres? O capitalismo abraça isso em troca de lucro. Isso é um processo reificado da heterossexualidade. Desta forma começa a exclusão dentro da própria comunidade LGBTQIAPN+: gays brancos excluem gays negros e afeminiados e, nos movimentos feministas mulheres brancas excluem mulher negras, trans e indígenas, e por aí vai.
O processo que legitima o capitalismo é a exclusão! Os corpos precisam ser padronizados para serem controlados!
Paul assinala a criação de um corpo pornográfico (musculoso, sem rugas) para que existam produtos que atendam estas demandas. É importante ressaltar que existem várias outras tecnologias da produção de si que não passam pela mudança social/legal do nome ou por aplicação de hormônios. O ‘Manifesto contrassexual’, o ‘Testo Junkie’ e ‘Um apartamento em Urano: crônicas da travessia’ demonstram a materialização da teoria queer e as outras possibilidades de existência nesse mundo.
“Acho que essas crianças lerão seus textos e entenderão suas propostas, acho que essas crianças vão amá-lo. Seu pensamento, seu horizonte, seus espaços. Você escreve para um tempo que ainda não chegou. Você escreve para crianças que ainda não nasceram e que viverão, elas também, nessa transição constante que é própria da vida”, escreve Virginie Despentes no prefácio de ‘Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia’. Mas podemos ir além, talvez ele escreva para pessoas que nem tiveram a chance de (re)nascer!
Nós falamos outras línguas. Eles dizem representação. Nós dizemos experimentação. Eles dizem identidade. Nós dizemos multidão. Eles dizem língua nacional. Nós dizemos tradução multicódigo. Eles dizem dominar a periferia. Nós dizemos mestiçar o centro. Eles dizem dívida. Nós dizemos cooperação sexual e interdependência somática. Eles dizem despejo. Nós dizemos habitemos em comum. Eles dizem capital humano. Nós dizemos aliança multiespécies. Eles dizem diagnóstico clínico. Nós dizemos capacitação coletiva. Eles dizem disforia, transtorno, síndrome, incongruência, deficiência, menos valia. Nós dizemos dissidência corporal. Nós dizemos REVOLUÇÃO! (PAUL BEATRIZ PRECIADO, 2020, p. 44).
Contrassexual. Farmacopornográfico. Sexualidade. Gênero. Transfeminismo.
Imagem: Espírito 6 de Sabine Passareli
Referências e dicas:
Sabine Passareli: https://www.sororcuir.care/ Miro Spinelli: https://www.mirospinelli.com/
Episódio 125 da Rádio Companhia: https://open.spotify.com/episode/5btQ982ndNR4T3NWMe2bV6?si=259de3c1e8ae43bf
Episódio 5 Podcast Sujeito em perspectiva: https://open.spotify.com/episode/0AeANRDvMvbQy0aoyV6WH4?si=3c75057c97734f09
Livro: Um apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Paul B. Preciado 2020.
Livro: Manifesto contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. Beatriz Preciado, 2014.
Livro: Texto Junkie: Sexo, drogas e biopolitica na era farmacopornográfica. Paul B. Preciado 2018.
Artigo: Ficções porno-políticas do corpo (a partir) de Preciado. Autora Ana Oliveira: https://www.scielo.br/j/ref/a/JrYdyqp8FhwVbfWv7mjbXGJ/?lang=pt#:~:text=Combinando%20fic%C3%A7%C3%A3o%20autopol%C3%ADtica%2C%20autoteoria%20e,renova%C3%A7%C3%A3o%20do%20sentido%20de%20si
Filme: Preciso dizer que te amo. Ariel Nobre. https://www.youtube.com/watch?v=uflTFLF7eHo
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