Fonte da imagem: Jornal da USP
Historiadora, filósofa, antropóloga, professora e pesquisadora feminista, Lélia Gonzalez (1935 -1994) nasceu em Belo Horizonte e com sete anos de idade se mudou com a família para a cidade do Rio de Janeiro para acompanhar o irmão futebolista Jaime de Almeida que foi jogar pelo Flamengo. Filha de mãe indígena, empregada doméstica e pai negro, trabalhador ferroviário, penúltima de 18 irmãos, Lélia Gonzalez se graduou em História e Filosofia, fez Mestrado em Comunicação e Doutorado em Antropologia, com cursos livres em Sociologia e Psicanálise. Foi uma das mais importantes intelectuais brasileiras do século XX.
Precursora na luta contra o racismo estrutural e na articulação entre gênero e raça no Brasil, ela reivindicou a necessidade da construção de um viés interpretativo a partir do olhar e da experiência das mulheres negras e suas vivências sem neutralizá-las e denunciou o racismo e o sexismo como formas de violência que as subalternizam. Ao romper com o discurso da democracia racial, denunciando o branqueamento, ela argumenta que o racismo como construção ideológica na sociedade de classes é estrutural, e sua reprodução se dá sem apelar para preconceitos.
Suas atuações militante e acadêmica estiveram sempre voltadas para dar voz e transformar a realidade daquelas que definia como “maiorias silenciadas''. Pautou também o respeito pelas diversas opções sexuais, a livre organização dos trabalhadores, a reforma agrária, e uma educação gratuita e democrática que respeitasse a cultura nacional. No que concerne à problemática social das mulheres negras, em 1979 publicou no jornal Lampião da Esquina o artigo “Mulher negra: um retrato” e no mesmo ano, na Latin American Studies Association (LASA) em Pittsburgh nos Estados Unidos, apresentou o artigo “Cultura, etnicidade e trabalho: efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher negra”. Em 1981 fez parte do conselho editorial do recém criado jornal “Mulherio”, financiado pela Fundação Ford e com sede na Fundação Carlos Chagas.
O recente livro ‘Por um feminismo Afro-latino-americano’ (ed. Zahar, org. Flavia Rios e Marcia Lima, 2020) reúne um amplo panorama da sua obra, que aborda desde os efeitos linguísticos e políticos da exploração da mulher até a formação de uma categoria político-cultural que ela nomeia amefricanidade. Em sua obra, Lélia afirma que existe uma divisão racial do espaço em nosso país, uma espécie de segregação ou polarização entre a população branca e a população negra, ficando ainda mais evidente quando se trata da inserção da mulher negra na formação social brasileira.
Sua contribuição para a leitura da mulher negra na sociedade brasileira parte da escravidão, para desmistificar o mito da inexistência de racismo, do brasileiro cordial e do estereótipo do negro quanto a uma suposta aceitação tranquila da escravidão. A violação das mulheres negras na escravidão, por meio da doação da força moral, se deu tanto no âmbito da trabalhadora do “eito” quanto da mucama. A mucama, responsável pelo bom andamento da casa grande, além de cuidar dos seus próprios filhos e prestar assistência aos seus companheiros, muitas vezes exercia também a função de “mãe preta”. Esta figura é um falso exemplo de integração e harmonia inter-racial que produziu, entretanto, uma resistência passiva ao passar para os “filhos dos brancos” a cultura africana.
Lélia buscou raízes profundas para entender o lugar da mulher negra no processo de formação cultural brasileiro, assim como os diferentes modos de rejeição e integração de seu papel na sociedade. Para tal, ela fala das noções de consciência e de memória, entendendo-as de forma dialética. A consciência seria o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. A memória é entendida como o não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Para Lélia a consciência exclui o que a memória inclui.
Assim a consciência (que é o lugar de rejeição), manifestada como discurso dominante (ou como efeito) em uma determinada cultura, oculta a memória mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como verdade. Mas a memória tem astúcia e ela fala através das mancadas do discurso da consciência, que faz de tudo para que a história negra seja esquecida e tirada de cena. Lélia usa as figuras da negra ativa, mucama, mulata “tipo exportação” que tem o carnaval como palco, reportagens de jornais, verbetes de dicionários, e publicações de autores que contam a história do Brasil para tirar o véu criado pela consciência, com o intuito de apagar e camuflar as raízes africanas, o racismo e o sexismo na cultura brasileira.
Através da análise dos dados dos censos de 1950, 1960 e 1980 (em 1970 a pergunta sobre raça/cor foi suprimida pela ditadura militar) Lélia evidencia o baixo nível educacional da mulher negra, o analfabetismo predominante, a ocupação majoritária na prestação de serviços de baixo nível (p. ex.: o censo de 1980 mostra uma concentração desproporcional de trabalhadoras negras nas ocupações manuais - 83% da força de trabalho negra têm ocupação caracterizada por baixos níveis de rendimento), e as precárias condições de vida, habitação e saúde que resultam em uma massa marginal com possibilidades nulas de ascensão.
A ocupação da força de trabalho se dá em grande maioria como doméstica, com dupla jornada e baixa remuneração, reforçando a inferiorização e expondo a exploração da mulher negra pela branca; e na profissão de mulata de exportação que denota uma exposição do corpo e a sua exploração como objeto sexual. Para a autora, portanto, não é por acaso que a força de trabalho negra permanece confinada nos empregos de menor qualificação e pior remuneração. A divisão racial do trabalho visando uma manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, remete a uma articulação ideológica, assim como a um conjunto de práticas que demonstram certa eficácia estrutural.
As noções de consciência e de memória, junto às pesquisas sobre a situação econômica da mulher negra aliado aos estudos sobre desigualdades raciais articulam uma perspectiva interseccional, pois envolvem as dimensões da dominação sexual, de classe e de raça associadas nas formas de opressão e hierarquização racial, bem como na formação de identidade de afirmação coletiva. Logo, Lélia foi uma das primeiras a identificar que numa sociedade racista e capitalista como a nossa, a mulher sofre sobreposições discriminatórias.
As estratégias de sobrevivência e resistência dessas mulheres superexploradas e alienadas passam, nos primórdios, pelo Candomblé, liderado por mulheres mães de santo, negras e pobres que assumem posição de poder; em grêmios recreativos de arte e escolas de samba; e no Movimento Negro Unificado (MNU). Mas a mulher negra anônima é aquela que exerce o papel mais importante na luta pela sobrevivência, pois não tem nada a perder, segundo Lélia.
Neste contexto, cabe destacar a importância dos movimentos sociais negros, principalmente a participação da mulher negra, mobilizando diferentes áreas da sociedade, assim como não negros, pois é aí que se encontra o espaço necessário para as discussões de consciência política, racismo e a exploração de classe e suas práticas. No cenário brasileiro o desenvolvimento e a expansão dos movimentos sociais iniciou-se na segunda metade dos anos 1970, reivindicando direitos e uma intervenção política mais direta. No caso da população negra, essas movimentações vão estar fundamentalmente no movimento negro, que esteve presente no conjunto das lutas contra a ditadura militar e em favor da democratização, e de associações de moradores de favelas e bairros periféricos. Os principais protagonistas são os filhos dos primeiros negros a ingressarem de forma definitiva na classe operária e nas classes médias; os primeiros estudantes negros a ingressarem na universidade; e jovens operários e trabalhadores negros e dançarinos de soul (símbolo moderno da contestação da juventude negra à dominação branca).
É no interior do Movimento Negro que surgem, em 1972, os primeiros grupos organizados de mulheres negras. Esses grupos apresentam-se fundamentais para uma maior exposição às práticas discriminatórias de mão de obra e fomento para o acesso dos setores médios da população negra no setor das ocupações não manuais. O Movimento de Favelas, por sua vez, surge a partir do processo de favelização dos grandes centros urbanos do Sudeste, organizados a partir do subproletariado urbano em associações de moradores. Tinham um caráter inovador e reivindicavam por melhores condições de habitação e saneamento básico, de transporte, de educação, de saúde etc. Este movimento acabou por influenciar os setores de classe média no sentido de também se organizarem em associações de moradores, surgindo assim o movimento de bairros. A partir da campanha eleitoral de 1982, com o encontro do Movimento Negro com o Movimento de Favelas, abre-se espaço para a formação de novos partidos políticos, atraindo setores que até então haviam permanecido à margem do processo político-partidário. Integravam algumas reivindicações dos movimentos sociais, lançando candidatos populares.
É neste momento que Lélia inicia sua experiência político partidária, tornando-se, até os dias atuais, importante referência para candidaturas femininas e negras, seja pelas pautas, seja pela alegria, pelas ironias, criatividade e diálogo próximo que estabelecia com as eleitoras e os eleitores. Integrou o diretório nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) desde seu início e, em 1982, foi candidata a uma vaga para Deputada Federal pelo Rio de Janeiro. Em novembro de 1985 escreveu uma carta se desligando do PT por entender que havia “um estreitamento de espaços para uma política voltada para as chamadas minorias”. No mesmo ano, se filiou ao Partido Democrático Trabalhista (PDT). Em 1986, em um contexto de baixíssima representatividade feminina e negra no legislativo, foi candidata pelo partido a uma vaga para Deputada Estadual pelo Rio de Janeiro com o slogan “A mulher na Assembleia”.
Em um período em que se intensificaram e aprofundaram muitas discussões sobre racismo, opressão, desigualdades e exploração da classe trabalhadora, é que se organiza, em 1983, o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras, grupo que luta contra a discriminação e a opressão de gênero e étnico-racial, buscando a inclusão sociopolítica e econômica das mulheres afro-brasileiras. Essa mobilização registra uma história de lutas importantes. No ano de 1983, por exemplo, acontece o II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe, onde, pela primeira vez na história do feminismo negro brasileiro, uma favelada (Jurema Batista, fundadora e presidente da Associação de Moradores do Morro do Andaraí) representava, no exterior, uma organização específica de mulheres negras.
A participação em encontros e congressos, apesar de permitirem a ampliação dos espaços de fala feminino, apresentavam também algumas contradições. Lélia revela que, mesmo dentro de movimentos feministas, havia um certo preconceito racial e a manutenção de algumas concepções estruturais da sociedade, inclusive por mulheres. Um exemplo é a denúncia de opressão e exploração de empregadas domésticas por suas patroas ser considerada, de maneira recorrente, como agressiva; a manipulação do discurso feminista como massa de manobra para a aprovação de propostas elitistas e discriminatórias; além da dificuldade de aceitação, dentro do próprio grupo de mulheres, de inclusão de mulheres negras e faveladas como vozes de liderança.
Em 1983, Lélia publicou, no jornal Folha de São Paulo, o artigo “Racismo por Omissão” e na revista da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), o artigo “Racismo e Sexismo na cultura brasileira”. Em 1985, juntamente com Benedita da Silva, na época vereadora eleita pelo Rio de Janeiro, foi nomeada pelo presidente José Sarney, por indicação do movimento de mulheres negras, para compor o grupo de 11 personalidades femininas, de diferentes áreas de atuação, que formaram o primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) do país. Naquele momento, segundo Lélia, o CNDM, embora tivesse comissões em diferentes temas como educação e cultura, tinha três bandeiras fundamentais: uma relativa à violência de gênero, outra ao processo Constituinte e outra ao problema da falta de creches.
A identidade amefricana, por sua vez, é proposta por Lélia como um novo enfoque para a formação histórico-cultural do Brasil, que para a intelectual é um país com inconsciente forjado exclusivamente em referências europeias e brancas. Mas, que seria na verdade parte de uma América Africana e que abarcaria todos negros da América do Sul, Central, Insular e do Norte como meio para atingir uma consciência efetiva enquanto descendentes de africanos. Entre as similaridades da marca da africanização apontadas por Lélia estão o caráter tonal e rítmico das línguas, músicas, danças e sistemas de crenças e também a ideologia do branqueamento.
Segundo Lélia a categoria amefricanidade floresceu e se estruturou no decorrer dos séculos que marcou a presença africana no continente. Manifestada em revoltas, elaboração de estratégias de resistência cultural, desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre (quilombos, cimarrones, cumbes, palanques, marronages e marrom societies), no contexto escravista. E ainda antes dele na chamada América pré-colombiana, cultura dos olmecas.
Pensada a partir de abordagem interligada com “racismo, colonialismo, imperialismo e seus efeitos” é uma proposta epistemológica, que ao ser usada extrapola as limitações territoriais, linguísticas e ideológicas porque ela está implicada política e culturalmente. Assim, assumir a amefricanidade contribuiria para ultrapassar uma visão idealizada, imaginária e mitificada da África e ainda voltar o olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente.
Referências
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 2020
GONZALEZ, Lélia. Carta ao Presidente do Partido dos Trabalhadores do Rio de Janeiro solicitando desligamento, 10 de novembro de 1985. Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/galeria/
GONZALEZ, Lélia. Panfleto da campanha para Deputada Estadual pelo PDT, 1986.
Disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/leliaGonzalez/galeria/
GONZALEZ, Lélia. Biografia.Editada em 22 de maio de 2021
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lélia_Gonzalez
Sugestões de filmes sobre Lélia Gonzalez
• Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história - com depoimentos de pesquisadores, familiares e ativistas que conviveram ou receberam influências intelectuais e políticas dela. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WtuOuxqH41E
• Em busca de Lélia - na mesma direção, a cineasta Beatriz Santos Vieira, formada pelo curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), realizou o documentário, cujo título revela os anseios geracionais por maior conhecimento dessa intelectual, anseios negligenciados pela academia brasileira.
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