(Foto: Luiza Castro/Sul21)
Considerando que as mulheres são atravessadas diariamente por violências em diversos âmbitos tanto no espaço público urbano quanto no privado, as redes de assistência devem existir como espaços de solução coletiva que visem reintegrar esse grupo à sociedade, auxiliando no desenvolvimento da autonomia financeira, e no restabelecimento da saúde física e mental. Esses locais são representados por Delegacias, Centros de Referência, Casas-abrigo e Centrais de Atendimento à Mulher. No entanto, no Brasil, segundo levantamento realizado pelo IBGE (2020) apenas 7% dos municípios têm Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Quando esse dado é associado com os do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), a realidade é impactante: em 2022 foram 1.437 mulheres vítimas de feminicídio, 245.713 sofreram agressão em contexto de violência doméstica, 613.529 ameaças e 899.485 foram as ligações para a Polícia Militar - 102 acionamentos por hora.
Uma vez que o Estado não provê proteção em relação à violência sofrida pelas mulheres, a organização da própria sociedade se torna fundamental para reivindicar o direito à vida e à dignidade. A partir da organização popular, portanto, é possível buscar outros modos de existir e habitar a cidade. Uma das frentes possíveis são as ocupações, que visam retomar uma propriedade que não está cumprindo com sua função social. A ocupação, principalmente de mulheres, por ser um espaço comunitário, retoma a socialização do trabalho reprodutivo, sendo um importante movimento de desalienação pela coletividade.
A Casa de Referência Mulheres Mirabal, em Porto Alegre (RS), foi uma ação organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário. Este, nasceu em 2011, na Venezuela, com o objetivo de organizar as mulheres latino-americanas para lutar contra a exploração e questionar os moldes de submissão e opressão no ambiente público e privado, principalmente no que diz respeito a abrigar e acolher as mulheres vítimas de violência. O movimento se articula internacionalmente através da organização de Encontros Internacionais de Mulheres Latino-Americanas e Caribenhas. Foram responsáveis por organizar a primeira ocupação de mulheres da América Latina, no dia 08 de março de 2016, em Belo Horizonte (MG) - a Casa de Referência da Mulher Tina Martins (MARINHO, 2023).
No Rio Grande do Sul esse movimento teve início em 2014 com a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres no Governo de Sartori. No dia 25 novembro de 2016, inspiradas pela ocupação em Belo Horizonte, e na data que marca o assasinato das Irmãs Mirabal na ditadura da República Dominicana, dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, o Movimento de Mulheres Olga Benário ocupa o antigo orfanato Lar Dom Bosco, na Rua Duque de Caxias em Porto Alegre. Às 3h da manhã, cerca de 100 mulheres ocuparam a edificação para reivindicar um espaço que pudesse atender e abrigar vítimas de violência: “a gente tem na cidade pouquíssimas estruturas para atender essa demanda. A gente tem um centro de referência e uma casa de abrigo que conseguem atender 48 vagas, sendo que a gente tem na cidade cerca de 50 denúncias por dia”, explica Géssica Sá Oliveira, uma das ocupantes da Mirabal (CANOFRE, 2016).
A Casa de Referência surge como um lugar que questiona a lógica da propriedade privada e da vida individualizada, assim como emprega a autogestão como reivindicação para desafiar as relações de poder estabelecidas na sociedade. Se impõe, principalmente, como uma estratégia que pressiona o poder público a buscar uma alternativa para as mulheres em situação de violência (MARINHO, 2023).
Além do acolhimento sem tempo determinado de “estadia”, a Mirabal oferece assistência jurídica e psicológica gratuitas. As mulheres permanecem na Casa até se recuperarem das agressões e se inserirem novamente na sociedade, sendo acompanhadas pelas outras mulheres do movimento mesmo depois de não estarem mais lá.
No entanto, a Casa sofre com represálias desde o início. As mulheres da Mirabal lutaram contra a reintegração de posse desta primeira edificação por 2 anos, até que o Estado ofereceu, em 2018, a edificação da antiga Escola Benjamin Constant para funcionar como o novo espaço de acolhimento. Quando as mulheres se instalaram no local, a Prefeitura voltou atrás e não autorizou a mudança, visto que o terreno da escola pertencia ao município (GOMES, 2018). A Prefeitura tentou obter a reintegração de posse, mas a Justiça determinou que as mulheres poderiam permanecer no local. Mesmo antes de serem reconhecidas legalmente, a Delegacia da Mulher e a Defensoria Pública do Estado encaminhavam mulheres para o local. O grupo se manteve na Escola até conseguir o alvará de funcionamento somente em 2022 (MARINHO, 2023).
Apesar das dificuldades enfrentadas, hoje a Casa de Referência permanece em funcionamento, já tendo acolhido mais de 800 mulheres em 7 anos de funcionamento:
Nosso objetivo não é só ser uma casa de passagem. Trabalhamos pra criar perspectivas, debater política e fazer com que essas mulheres tomem pra si o papel de construir seu próprio caminho. Construímos laços, vínculos, histórias e temos muito orgulho de ver cada uma seguir seu caminho, muitas delas hoje sendo parte da casa e construindo a mesma ao nosso lado, dando oportunidades e perspectivas para outras mulheres! (CASA MULHERES MIRABAL, 2023).
Além do trabalho de abrigo e acolhimento, o grupo organiza diversas ações que visam coletivizar as pautas, trazer mais mulheres para construírem o movimento e promovem atividades de capacitação. Também existem projetos de geração de renda, sendo o principal o Quitutes Mirabal, que visa a emancipação financeira das mulheres (MARINHO, 2023).
Assim, as mulheres do Olga Benário marcam o cenário político da cidade de Porto Alegre, questionam os modelos de organização social e reivindicam outras formas de existência urbana (MARINHO, 2023), que resistam à violência sofrida pelas mulheres nas esferas do espaço público e privado, construindo um feminismo comunitário.
(Foto: Montagem a partir de posts no Instagram da Casa Mulheres Mirabal)
* As reflexões dessa publicação se originam do seminário de leitura da dissertação "EXISTO PORQUE RESISTO: a casa de referência mulheres mirabal como corpo-território e expressão política das lutas feministas no espaço urbano" (MARINHO, 2023).
* Para mais informações ou para apoiar a Casa, acesse: https://www.instagram.com/casamulheresmirabal/.
Palavras-chave: Mulheres Mirabal; Olga Benário; Feminismo Comunitário.
Referências
CANOFRE, Fernanda. Mulheres ocupam prédio no centro de Porto Alegre por mais vagas em abrigo e assistência. Sul 21, Porto Alegre, 25 de novembro de 2016. Disponível em: https://sul21.com.br/cidadesz_areazero/2016/11/mulheres-ocupam-predio-no-centro-de-porto-alegre-por-mais-vagas-em-abrigo-e-assistencia/. Acesso em: 22 set. 2023.
CASA MULHERES MIRABAL. Porto Alegre. 17 ago. 2023. Instagram: @casamulheresmirabal. Disponível em https://www.instagram.com/p/CwDHeRqrfJf/. Acesso em: 25 set. 2023
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 22 set. 2023.
GOMES, Luís. Mirabal corre contra o tempo para evitar despejo e continuar acolhendo mulheres vítimas de violência. 2018. Disponível em: https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2018/05/mirabal-corre-contra-o-tempo-para-evitar-despejo-e-continuar-acolhendo-mulheres-vitimas-de-violencia/. Acesso em: 25 set. 2023.
GOMES, Luís. Integrantes da Mirabal ocupam escola cedida em negociação; Prefeitura nega acordo e pede desocupação. 2018. Disponível em: https://sul21.com.br/ultimas-noticias-geral-areazero-2/2018/09/integrantes-da-mirabal-ocupam-escola-cedida-em-negociacao-prefeitura-nega-acordo-e-pede-desocupacao/. Acesso em: 25 set. 2023.
MARINHO, Bárbara Rodrigues. EXISTO PORQUE RESISTO:: a casa de referência mulheres mirabal como corpo-território e expressão política das lutas feministas no espaço urbano.. 2023. 154 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2023.
SUL 21. Ainda mais necessária na pandemia, Casa Mirabal enfrenta disputa interminável por regulamentação. 2021. Disponível em: https://sul21.com.br/geral-1/2021/04/ainda-mais-necessaria-na-pandemia-casa-mirabal-enfrenta-disputa-interminavel-por-regulamentacao/. Acesso em: 25 set. 2023.
SUL 21. Mirabal recebe alvará para acolhimento de mulheres vítimas de violência. 2022. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2022/04/mirabal-recebe-alvara-para-acolhimento-de-mulheres-vitimas-de-violencia/. Acesso em: 25 set. 2023.
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