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Foto do escritorAndréa Viana

As relações dos complexos multifuncionais com o espaço público


Imagem: Plano Diretor de São Paulo, 2014.


A mistura de usos do solo urbano poderia ser considerada como presente na gênese das cidades. O uso misto, no entanto, passa a ser discutido teoricamente a partir da metade do século XX e tem por essência o entendimento de combinações de diferentes funções, seja em uma edificação, na combinação de um grupo de edificações ou a nível da cidade, com a mistura de usos em áreas urbanas (SCHWANKE, 2003).


A cidade do urbanismo moderno priorizou a adoção do zoneamento funcional e das circulações que aumentaram as distâncias e foram entendidas como respostas contra a decadência da cidade tradicional e para a reconstrução das cidades europeias no período pós-guerra. Porém, mostraram-se limitadas no tempo, tendo criado cidades monótonas, monofuncionais, centradas nos deslocamentos e, muitas vezes, inseguras.


A partir da década de 1920, através da iniciativa privada, ressurgem, nos Estados Unidos, os empreendimentos imobiliários de uso misto, amparados nas evoluções tecnológicas que permitiram a verticalização das edificações. Estes foram construídos com o planejamento de espaços, fluxos e operações dedicados a cada um dos usos e do conjunto como um todo e o entendimento da complexidade de projeto e da construção que um empreendimento deste tipo demandava, com cuidadoso planejamento de integração de necessidades dos diversos usos do programa da edificação, a coordenação dos interesses dos diferentes agentes envolvidos no processo, tanto na esfera pública quanto privada (KOOHLAS, 2008).


Mais recentemente, a saturação dos sistemas de transporte e a ideia de que a unidade de planejamento deve considerar a escala humana dá origem a novas abordagens. Conceitos como “cidade para pessoas” de Gehl (2015), “urbanismo sustentável” de Farr (2013) ou “cidade caminhável” de Spek (2016), por exemplo, surgem como resposta para a necessidade de diversidade urbana. Fatores econômicos e políticos, relacionados ao mercado imobiliário, crescimento das cidades, em especial na Ásia e Oriente Médio, e a complexidade das cidades contemporâneas que demandam espaços múltiplos contribuem para o aparecimento de diversos complexos multifuncionais de destaque.


Mas afinal, como estes empreendimentos imobiliários provindos da iniciativa privada podem contribuir com as dinâmicas sociais que acontecem nos espaços públicos?


Em 1961, Jane Jacobs publica "The Death and Life of Great American Cities", (A Morte e Vida das Grandes Cidades Americanas, em português) e questiona o zoneamento monofuncional das cidades da época. Muito claramente defende a mistura de usos no solo urbano como instrumento de geração de vitalidade e diversidade nos bairros. É muito importante salientar, porém, que, em nenhum momento a autora se refere a iniciativas privadas ou ao mercado imobiliário. Seus escritos abordam as dinâmicas dos espaços públicos. A relevância da publicação está na ênfase aos benefícios que a mistura de usos pode gerar para as cidades e que podem ser considerados também para uma análise dos empreendimentos privados.


Andy Coupland, no livro Reclaiming the City, publicado em 1997, relata que a inserção de um complexo multifuncional privado, em uma determinada área urbana, propicia uma maior diversidade no entorno imediato, através da mistura de usos em um mesmo local, que diminui distâncias e fomenta os deslocamentos a pé para os usuários. As ruas ficam mais movimentadas pela maior circulação de pessoas e por consequência mais seguras, além da redução dos índices de poluição urbana como consequência direta da redução da necessidade do uso do automóvel. Esta redução por sua vez desafoga o trânsito das vias próximas. Tombari, Herndon e Mafuz defendem que os complexos multifuncionais fomentam a sociabilidade através da integração de espaços públicos e privados, e podem iniciar o processo de reestruturação urbana através da revitalização do entorno, quando inseridos em proximidade com modais de transporte urbano.


Estes mesmos autores defendem que os aspectos positivos somente serão atingidos com o cuidadoso estudo de áreas adequadas na cidade para o desenvolvimento destes complexos. De nada adianta colocá-los em áreas com transporte urbano deficitário gerando por consequência o aumento do fluxo de automóveis, o que por sua vez aumenta a demanda de infra estrutura rodoviária. Também deve ser considerado o impacto que podem causar nos valores de aluguéis para evitar o processo de gentrificação e segregação urbana.


Outro aspecto importante é a tipologia do empreendimento, ainda pouco abordada na literatura. Tipologias que se abrem para a cidade, com fachadas ativas promovendo interação das atividades do térreo com o entorno imediato, por consequência fomentam a vitalidade e diversidade nas ruas adjacentes e convidam novos usuários para conhecer o complexo. Tipologias mais fechadas, criam espaços contidos, fechados para o exterior, e que em nada contribuem para a segurança da área onde estão inseridos.


No contexto brasileiro, várias cidades brasileiras já perceberam a tendência direcionada ao uso misto e a importância de regrar futuras construções para extrair o maior número de aspectos positivos da tipologia. O Plano Diretor de São Paulo, de 2014, inclui incentivos considerando o uso misto como uma das estratégias de qualificação da vida urbana (PDE, 2014), gerando novas centralidades e diminuindo distâncias. Em Florianópolis, a Prefeitura Municipal publicou o “Guia Rápido de Incentivo ao Uso Misto”, explicando os incentivos construtivos para os empreendimentos de uso misto que além da diversidade de usos incluíssem fachadas ativas, áreas de fruição pública no lote e acessibilidade. O Plano Diretor de Curitiba (DZIURA, 2009) determina que empreendimentos construídos em determinadas zonas da cidade, com espaços de uso não residencial voltados diretamente para a rua e acessos independentes direcionados para o pedestre, além de fachadas do térreo ocupadas por estabelecimentos comerciais em no mínimo 50% da sua extensão, estão qualificados a receberem incentivos construtivos, na forma de acréscimo de área total construída e/ou descontos de IPTU.


Pode-se concluir então, que, quando considerados de forma adequada, como potenciais agentes de transformação urbana, podem gerar benefícios para a dinâmica urbana. Gestores urbanos precisam conhecer os aspectos positivos e negativos, para decidirem quais áreas da cidade podem receber os complexos multifuncionais, sempre com a consciência de que a dimensão humana é determinante para o planejamento das cidades e que a mistura de usos pode gerar vitalidade, contato, integração e por consequência segurança para os espaços públicos vizinhos.


Referências:


COUPLAND, A. Reclaiming the City: Mixed Use Development. 1997. London: E&FN Spon. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/09654310500242048>. Acesso: 3 jul. 2018


DZIURA, Giselle Luzia. Permeabilidade espacial e zelo urbanístico no projeto arquitetônico: da Modernidade à Pós-modernidade nos edifícios multifuncionais do Eixo Estrutural Sul de Curitiba, 1. 2009. 465 f. Tese (Doutorado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16133/tde-29112010-083628/pt-br.php>. Acesso em: 17 ago. 2019.


FARR, Douglas. Urbanismo Sustentável: Desenho Urbano com a Natureza. 1ed. Porto Alegre: Bookman, 2013.


GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. 2 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015.


GUIA DE INCENTIVO AO USO MISTO. Prefeitura de Florianópolis. Disponível em: https://ipuf.webflow.io/instrumentos/uso-misto. Acesso em 15 mar 2021.


HERNDON, Joshua D. Mixed-Use Development in Theory and Practice: Learning from Atlanta´s Mixed Experiences. Georgia Tech Library, 2011. Disponível em: <http://hdl.handle.net/1853/40790>. Acesso em: 14 ago. 2018.


JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. 3 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.


KOOLHAAS, Rem. Nova York Delirante. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008.


MAHFUZ, Edson da Cunha. Tipo, Projeto e Método, Construção Disciplinar: Quatro Partidos em Debate 1960/2000. Porto Alegre: Marca Visual, 2011. 85 p.


PDE. Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. Lei nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Estratégias ilustradas. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/marco-regulatorio/plano-diretor/estrategias-ilustradas/


SCHWANKE, Dean et al. Mixed-Use Development Handbook. 2 ed. Washington: Urban Land Institute, 2003


SPECK, Jeff. Cidade Caminhável. 1ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016.


TOMBARI, Edward A. Smart Growth, Smart Choices Series: Mixed-Use Development. 2005. National Association of Home Builders. Disponível em: www.siouxfalls.org/Planning/.../CE42E0F023384CF4991708F2DEC26483.ashx. Acesso em: 12 fev. 2019


















55 visualizações1 comentário

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1件のコメント


Katia Ferreira de Oliveira
Katia Ferreira de Oliveira
2021年3月18日

Ótima contribuição para pensarmos nossas cidades dentro de uma perspectiva feminista e inclusiva! Dentre muitos ganhos pra vida das mulheres, crianças e idosos, o uso misto nos edifícios, aumenta a segurança nas ruas e facilita a realização das variadas tarefas cotidianas. Trabalhar o conceito de proximidade dos serviços, equipamentos e comércio, na escala do bairro, é uma importante discussão do Urbanismo pós pandemia pra criarmos cidades mais inclusivas, justas e sustentáveis!

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