O censo profissional realizado pelo CAU/BR em 2020 apontou no Brasil existe aproximadamente 100 mil arquitetos ativos, e que as mulheres arquitetas representam 61% deste total. Na faixa etária dos 20 aos 25 anos representam uma porcentagem ainda mais alta, de 78,3%.
De posse destes números, é compreensível que se estude cada vez mais sobre a participação das mulheres no campo profissional, seja no contexto atual do exercício profissional ou através de publicações de mulheres arquitetas que se dedicaram ao estudo da trajetória feminina na profissão. Na década de 1970 surgem nos estados unidos as primeiras publicações (MERRET, 2017) destacando um grupo de autoras americanas.
Doris Cole, nascida em Chicago, no ano de 1938, faz parte deste grupo, juntamente com Dolores Hayden, Judith Paine, Gwendolyn Wright, dentre outras (BELARMINO, 2019). Foi uma das precursoras a abordar a temática do feminismo na arquitetura americana. Graduada em 1959 pelo Radcliffe College, recebeu seu Master's Degree, da Harvard Graduate School em 1963. De 1981 a 2012 atuou como sócia fundadora do escritório Cole e Goyette, especializado em arquitetura residencial, educacional e comercial. Atualmente é diretora do escritório Doris Cole FAIA, Architecture/Planning, fundado em 2012 (COLE, 2012).
Sua carreira profissional também inclui a docência, uma longa lista de premiações, dentre elas o prêmio Women in Design Award of Excellence da Boston Society of Architects recebido em 2006 e, a autoria de cinco livros.
Dentre as suas publicações destaca-se o livro “From Tipi to Skyscraper: a History of Women in Architecture”, publicado em 1973 e reconhecido por muitos como o primeiro livro publicado sobre mulheres e arquitetura nos Estados Unidos. É uma obra densa, que descreve com muitos detalhes a participação das mulheres no campo da arquitetura. Ao longo de cinco capítulos, e 150 páginas a autora apresenta os diferentes papéis da mulher americana, em um amplo recorte temporal - desde as comunidades indígenas até o início da década de 1970 - com tarefas e atividades dependentes do contexto histórico e social da época.
O texto é repleto de fatos característicos da realidade americana, possivelmente desconhecidos do leitor brasileiro. Já no prefácio, a autora explica ter escrito a obra a partir de depoimentos de mulheres atuantes na época, recebidos por cartas, visto que os livros precedentes praticamente não incluíam mulheres arquitetas. Admite que o livro pode não agradar a todos e coloca claramente o objetivo documental da obra, reconhecendo que os fatos descritos podem estar relacionados a movimentos feministas, porém optando por afastar-se de ideologias (COLE, 1973).
O livro se faz útil, também, para o entendimento das contribuições da mulher americana no campo da arquitetura, sob um ponto de vista histórico e social, demonstrando que mesmo muito antes da existência dos Estados Unidos as mulheres já estavam envolvidas na arquitetura de forma prática (MERRET, 2017). Apresenta as tradições das comunidades indígenas americanas e dos pioneiros, que chegam trazendo seus próprios costumes e deparando-se com uma nova realidade passam a replicar práticas dos povos nativos. A mulher indígena era a arquiteta da comunidade. A ela cabia o papel de escolher a localização da aldeia, projetar, fabricar e construir as tendas, com paciência, persistência, conhecimento e habilidades manuais. Os homens ficavam encarregados das tarefas que necessitavam exposição ao perigo e força muscular (COLE, 1973).
.
No segundo capítulo, Doris Cole retrata a mulher americana do início do século XIX, interessada em etiqueta, arte, estilos arquitetônicos e economia doméstica. Relata que as publicações da época, muitas vezes escritas por mulheres, tratavam destes assuntos e serviam de veículo de troca de ideias entre o público feminino, confinado a vida privada. A mulher era responsável por transformar o lar em um ambiente agradável, eficiente e saudável, através da arquitetura doméstica. Como consequência, adquiriu conhecimentos referentes a distribuição de ambientes em planta considerando ventilação, insolação, materiais, métodos e custos da construção. Por considerarem os homens arquitetos caros e pouco práticos, preocupados com aspectos históricos e estilos de arquitetura, também eram responsáveis pela supervisão e orientação de como construir a arquitetura das suas residências (COLE, 1973).
.
O terceiro capítulo, aborda principalmente o papel da mulher no final do século XIX, período marcado pelas guerras, industrialização, urbanização e mudanças sociais que permitiram (ou por vezes forçaram) a mulher a ingressar na força de trabalho. Enquanto a grande maioria das mulheres optou por ocupações impostas pela sociedade como “femininas” outras escolheram utilizar o conhecimento no campo da arquitetura para ajudar na reconstrução e saneamento das cidades, auxiliando comunidades necessitadas de novas habitações. É importante ressaltar que mesmo com estas mudanças, economicamente e politicamente, mulheres e homens não eram considerados iguais perante as leis americanas. A mulher ainda era vista como responsável pelo bem-estar da família e pela propagação das ideias religiosas. A autora cita no final do capítulo diversas personalidades femininas que trabalharam como arquitetas profissionais nos anos finais do séc. XIX e iniciais do séc. XX (COLE, 1973).
A educação das mulheres arquitetas também é tema do livro, relatando o aparecimento das primeiras instituições de ensino de arquitetura nos Estados Unidos, a resistência das mesmas na aceitação de alunas arquitetas e, por consequência, a instituição da primeira e única escola de arquitetura para mulheres nos Estados Unidos: a Cambridge School of Architecture and Landscape Architecture, em 1916. Na Cambridge School os homens eram os professores, e acreditavam que mulheres deveriam aprender arquitetura residencial e paisagística. O currículo incluía aulas práticas e teóricas, com o objetivo de preparar as alunas para o mercado profissional. Elas, porém, pretendiam aprender sobre diversos campos da arquitetura: escolas, hospitais, clubes e até mesmo o planejamento de bairros e comunidades (BELARMINO, 2019). Também defendiam o direito ao casamento e a prática profissional, costume pouco usual para a época. A partir das interações das alunas da Cambridge School com os alunos arquitetos da Harvard School of Architecture surgem diversos escritórios comandados por arquitetas e arquitetos. A própria Doris Cole fundou seu primeiro escritório em sociedade com Harold Goyette, com quem se casou em 1979 (COLE, 1973).
Por fim, a autora descreve os desafios enfrentados pelas arquitetas americanas no período de 1948 a 1971. Citando personagens e dados quantitativos, explica a predominância da arquitetura residencial nos portfólios, as condições de trabalho, as diferenças salariais e de direitos nos diferentes estados americanos. Também aborda a criação do Instituto Americano de Arquitetos (AIA) e os primeiros congressos que contaram com a participação feminina. Na publicação fica evidente que muitas mulheres, apesar de possuírem conhecimento arquitetônico, não se tornaram arquitetas por normas de comportamento impostas pela sociedade. Mesmo quando tiveram a oportunidade de adquirir uma educação formal, após o surgimento das faculdades de arquitetura, poucas estabeleceram seus próprios escritórios e nestes predominavam os projetos de arquitetura residencial e paisagística. Muitas optaram por posições coadjuvantes no campo de trabalho para poderem conciliar as demandas domésticas e profissionais. Outros livros da autora são Eleanor Raymond, Architect, The Lady Architects: Lois Lilley Howe, Eleanor Manning, and Mary Almy 1893–1937, and School Treasures: Architecture of Historic Boston Schools.
Imagem: montagem da autora a partir de imagens disponíveis nos websites https://www.amazon.com.br/Doris-Cole/e/B001K82WFW/ref=dp_byline_cont_book_1 e http://www.doriscolearchitect.com/index.html.
Referências:
BELARMINO, Camila Almeida. Arquitetas e urbanistas como objetos de pesquisa: a construção das narrativas e os debates historiográficos nos EUA. Anais do 2o Encontro Internacional Histórias e Parcerias. Rio de Janeiro. Disponível em: 2019. https://www.historiaeparcerias.rj.anpuh.org/resources/anais/11/hep2019/1570038644_ARQUIVO_6f93b5f8d8e24342dd40710cd618c946.pd. Acesso em: 02 março 2020.
Boston Society of Architecture. Disponível em: https://www.architects.org/wid-award-of-excellence-recipients/awardee-doris-cole-faia. Acesso em: 02 março 2020.
CAU/BR. Censo dos Arquitetos e Urbanistas do Brasil. 2015. Disponível em: https://www.caubr.gov.br/wp-content/uploads/2018/03/Censo_CAUBR_06_2015_WEB.pdf. Acesso em 05 janeiro 2021.
Doris Cole, FAIA, Architecture/Planning. Disponível em: Doris Cole, FAIA Architecture/Planning. Acesso em: 02 março 2020.
MERRET, Andrea Jeanne. Scholarship as Activism: Doris Cole’s and Susana Torre’s Pioneering Feminism in Architectural History. Field: A free journal for architecture. Londres, p. 79-88. nov. 2017. Disponível em: http://field-journal.org/wp-content/uploads/2018/01/6-Scholarship-as-Activism.pdf. Acesso em: 12 abril 2021.
Comentarios