top of page
Buscar
Foto do escritorKátia Oliveira

A Cidade Cuidadora X O Urbanismo Androcêntrico


Foto: Agência de Imagens da Prefeitura de Curitiba.


Com a divisão sexual do trabalho imposta durante o processo de industrialização mundial, que separou o trabalho reprodutivo e produtivo, novas identidades e responsabilidades de gênero surgiram, havendo um deslocamento dos cuidados com a reprodução da vida em direção às mulheres mães, impactando em muito a sua vida. Este processo sempre foi difícil entre as mulheres mães e trabalhadoras assalariadas, devido às altas cargas de atividades na jornada cotidiana. Uma outra importante mudança nos trabalhos domésticos que irá impactar em muito a vida das mulheres será a transformação na concepção de maternidade, com um novo valor dado à infância e aos trabalhos de cuidados de crianças, idosos e doentes. (VALDIVIA, 2020)


Esta nova divisão do trabalho, atendeu a uma lógica binária (feminina e masculina) e patriarcal que colocou as mulheres em condições de maior vulnerabilidade e desigualdade social em relação aos homens. Nesse processo houve um deslocamento do cuidado desde o espaço doméstico/comunitário ao âmbito privado das famílias e das redes femininas de cuidados, fazendo com que nossas cidades atuais não sejam preparadas para satisfazer as demandas das mulheres, sobre as quais recai a maior parte da responsabilidade pelos cuidados. (VALDIVIA, 2020)


Por outro lado, o chamado “urbanismo”, conceito que aparece de diversas formas na virada do século XIX para o XX, aplica, no campo da organização das cidades, os princípios estabelecidos na indústria. A noção-chave é a de especialização contida no sistema taylorista, que sistematizou o processo industrial, tratando de decompor e simplificar as tarefas para tornar sua realização mais rápida e rentável. O urbanismo moderno vai incorporar a lógica industrial na prática sob a forma de zoneamento de usos que, mais tarde, Le Corbusier e a Carta de Atenas levaram ao extremo. (ASCHER, 2010)


Na cidade moderna da revolução industrial, a mobilidade das informações, dos bens e do veículo privado assume um lugar central. A primeira necessidade é adaptar as cidades às novas exigências da produção, do consumo e das trocas mercantis. Haussmann, Cerdá, Sitte, Howard e, certamente, Le Corbusier estavam movidos, através de suas práticas e reflexões, pela preocupação de adaptação das cidades à nova sociedade industrial europeia. (ASCHER, 2010)


A partir do início do século XX, o Brasil também seguirá este caminho, com transformações urbanas que seguiram os preceitos dos novos paradigmas ditados por homens brancos e proprietários. Este urbanismo que pensa a cidade somente a partir do trabalho produtivo, ao qual pode ser chamado de “urbanismo androcêntrico”, se impõe como neutro e universal, mas está diretamente ligado à noção de patriarcado. (VALDÍVIA, 2020) Androcentrismo é um termo cunhado pelo sociólogo estadunidense Lester F. Ward em 1903 e não se refere apenas ao privilégio dos homens, mas também à forma como as experiências masculinas são consideradas como as experiências de todos os seres humanos e tidas como uma norma universal tanto para homens quanto para mulheres. (Wikipédia, 2020)


O modelo de “urbanismo androcêntrico” associa o âmbito público com o produtivo e o âmbito privado com a esfera reprodutiva. Impõe esta separação a partir da divisão sexual do trabalho, conduzindo a um tipo de segregação espacial segundo o sexo. Nesse modelo, os espaços surgem das relações de poder e é dentro dessas relações que se estabelecem as normas, definindo os limites sociais e espaciais e ditando quem pertence a um lugar ou quem será excluído. (VALDIVIA, 2020).


Para a socióloga espanhola Blanca Valdívia, “Colocar as atividades reprodutivas no espaço doméstico levou a que nossas cidades atuais não estejam preparadas para satisfazer os cuidados, o que incide negativamente na qualidade de vida e na rotina das pessoas que desenvolvem essas atividades, que seguem sendo majoritariamente mulheres.” A divisão entre público (masculino) e privado (feminino), que define para cada espaço um protagonismo de gênero, tem consequências discriminatórias e atenta contra a igualdade de oportunidades. Também a liberação de algumas horas dedicadas ao trabalho doméstico e de cuidados na esfera privada é fundamental para que as mulheres obtenham tempo para dedicarem-se aos seus desejos e possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional. A falta de tempo e privacidade as colocam em uma posição deficitária na disputa para ocupar espaços na esfera pública. (VALDIVIA, 2020).


Para romper com a lógica binária que define o público e produtivo aos homens e o doméstico e o reprodutivo às mulheres é preciso acabar com os essencialismos que outorgam às mulheres qualidades especiais para exercerem as atividades de cuidados a partir de diferenças biológicas e posicioná-las como atividades sociais para além dos laços familiares e sanguíneos. Precisamos superar o modelo de família nuclear heteronormativa patriarcal e colocar os cuidados num lugar central em nossas cidades, uma vez que existe uma grande diversidade de modelos familiares que sustentam relações afetivas e de cuidados. (VALDÍVIA, 2020)


O conceito de “cidade cuidadora”, é desenvolvido por Valdívia no artigo Del urbanismo androcéntrico a la ciudad cuidadora e se estrutura na valorização do trabalho reprodutivo de cuidados e de sua inserção no centro de diferentes políticas setoriais, planos e projetos de desenvolvimento urbano, pautados, especialmente, pela equidade de gênero. Para a autora, uma cidade cuidadora, que se contraponha ao modelo de urbanismo androcêntrico, deve reconhecer e valorizar as atividades reprodutivas e estabelecer políticas de combate ao projeto privatista, oligárquico do capital produtivo, que gera exclusão.


É evidente que as pessoas são interdependentes e também dependentes do meio ambiente em que estão imersas. É urgente construirmos uma lógica de planejamento que não se oriente pelo consumo de recursos territoriais, energéticos e ambientais sem limites. Que busque minimizar os resíduos produzidos, promova ações para descontaminação do solo, do ar e da água, impulsione estratégias para aproveitamento de equipamentos e espaços subutilizados ou não utilizados, priorize a reabilitação de edifícios e espaços em contraponto à prática das demolições e que não expulse as pessoas de seus bairros por aluguéis altos, especulação e regulação do uso do solo. Por outro lado, as retóricas capitalistas neoliberais patriarcais, além de atuarem na lógica da exaustão dos recursos naturais finitos, advogam por um ideal de autossuficiência e individualismo que marginaliza o trabalho reprodutivo, que depende de uma rede de apoio. (VALDIVIA, 2020)


A cidade cuidadora também trata as políticas habitacionais como prioridade e produz programas habitacionais e projetos adequados à diversidade de grupos familiares. A moradia, suporte fundamental para as atividades domésticas e comunitárias, está estreitamente vinculada aos cuidados de reprodução da vida, especialmente nas famílias mais pobres. De acordo com o relatório sobre adequação habitacional, uma moradia adequada deve conter condições básicas para o desenvolvimento da vida e, para que isso ocorra, devem ser considerados sete elementos centrais: 1) a segurança da posse; 2) a habitabilidade; 3) a disponibilidade de serviços; 4) a infraestrutura e os equipamentos públicos; 5) a localização adequada; 6) a adequação cultural; 7) a não discriminação e a priorização de grupos vulneráveis a preços acessíveis. (ROLNIK, 2012)


Da mesma forma, é fundamental a introdução de critérios de gênero sobre o ambiente construído, através da produção de novas tipologias de habitação coletiva cujo desenho contemple elementos para facilitar o trabalho doméstico de cuidados, para adequar-se aos novos papéis de gênero e às variações de diferentes estruturas familiares. Estas tipologias devem privilegiar espaços compartilhados que coloquem os cuidados no centro, promovendo maior socialização e acompanhamento de pessoas dependentes a fim de tornar mais leve a carga derivada das atividades domésticas.


Na escala da cidade e do bairro, as leis, planos e projetos urbanos devem fomentar a distribuição equitativa de serviços, equipamentos e comércio de proximidade em diferentes regiões, dar lugar a percursos funcionais e minimizar o uso do veículo privado, construindo ciclovias e corredores verdes. Uma cidade que proporciona que as pessoas se cuidem conta com espaços públicos equipados para o lazer e a diversidade de práticas esportivas nos seus diferentes bairros, favorecendo a melhora da saúde física e as relações interpessoais. É importante construir espaços públicos abertos onde seja possível estar a salvo das intempéries, com lugares para sentar, descansar, conversar e estabelecer relações sem a necessidade de alguma atividade comercial. (VALDIVIA, 2020)


Deve também dar suporte físico para o desenvolvimento de tarefas como fazer compras, levar as crianças na escola, pessoas doentes para tratamento de saúde. A concretização desse suporte físico se encontra na existência de espaços públicos que contem com jogos infantis para diferentes idades, espaços com água, banheiros públicos, vegetação, sombra, bancos e mesas, iluminação adequada, rampas de acesso e muitos outros elementos. A cidade que cuida oferece autonomia às pessoas dependentes como crianças, idosos e deficientes e permite que conciliem as diferentes esferas de sua vida cotidiana. O financiamento de programas de proteção e cuidado de pessoas dependentes contribui na diminuição da sobrecarga de trabalho feminino e resulta na maior autonomia de todas as pessoas. (VALDIVIA, 2020)


Quando olhamos para as questões de segurança, diferentes fatores e características contribuem para que uma cidade não seja segura para as mulheres, e estes fatores podem ser potencializados levando em consideração por exemplo a idade, a renda, a raça e a sua orientação sexual. As violências dirigidas às diversas mulheres, em diferentes âmbitos de suas vidas, seja em casa por pessoas da família ou próximas ou circulando pela cidade entre desconhecidos, fazem do Brasil o quinto colocado no ranking da violência de gênero no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Aplicar as leis existentes, criar espaços de combate à violência de gênero e de atendimento às mulheres vítimas é estrutural para uma cidade cuidadora.


Por fim, vale destacar que além de muitos outros atributos que podem ser acrescentados, para a construção de cidades cuidadoras é indispensável a participação política e cidadã daquelas pessoas que melhor conhecem a realidade de seus bairros e comunidades, gestionam para melhorá-los e que são quem majoritariamente realiza as atividades de cuidados cotidianos, têm menores rendimentos, trabalhos informais e são as responsáveis pela família e pelos trabalhos comunitários. Os espaços de participação política, de predomínio masculino e branco, devem garantir a paridade de gênero e criar condições materiais para que as mulheres e demais minorias em representação, consigam exercer seu direito à participação nas decisões sobre planejamento das cidades de forma efetiva. É urgente construirmos novos paradigmas para o urbanismo contemporâneo pós pandêmico que se volte para os cuidados com a reprodução da vida cotidiana e que faça contraponto ao planejamento urbano androcêntrico vigente.


Bibliografia:


ASCHER, François. Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romano Guerra, 2010.


ROLNIK, Raquel. ¿Cómo Hacer efectivo el derecho de las mujeres a la vivienda? Relatora Especial de Naciones Unidas para la Vivienda Adecuada. Disponível em: http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/01/ guia-mulheres-ES.pdf. [online] [data da consulta: 10 de maio de 2021]


VALDÍVIA, Blanca. Del urbanismo androcéntrico a la ciudad cuidadora. Hábitat y Sociedad, n.º 11. Universidad de Sevilla, 2018.


Androcentrismo Significado. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Androcentrismo . [online] [data da consulta: 17 de março de 2021]


59 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page